segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Uma Fuga Espetacular.





FUGA DO MORRO DO CRUZEIRO RUMO AO COMPLEXO DO ALEMÃO.

As formas escuras corriam pela estrada de terra. Em sua fuga alucinada se atropelavam se mordiam e se misturavam como impurezas. Rolavam uma sobre as outras como bolas de farrapos: sujas, enfurecidas, mirabolantes e covardes. Eram tantas que na virada da esquina quase antepararam aquela fuga estranha. Por alguns instantes ficaram amontoadas como um monte de bosta. Mas o terror era maior. E como ratos, pulavam e se esgueiravam. Enquanto fugiam dos tiros.
Um grupo de “caçadores” observava “os ratos” por miras telescópicas. O mais alto coçou a cabeça por baixo do boné, e perguntou para o mais baixo:
- Você trouxe a gaiola?
- Trouxe.
- E as cordas? Trouxe aquelas que eu pedi? As de cerdas de náilon?
- Também.
- Pelo o que estou vendo aqui, vamos precisar de um monte de gaiolas.
- Tá parecendo um filme que eu vi. Era uma fuga de um campo de prisioneiros. Do alto um avião caça passava e metralhava a estrada. Tinha um que se arrastava com as tripas de fora. Outro carregava um colega e caia um braço do corpo. Eu não consegui dormir direito depois do filme.
- E qual é o nome do filme?
- Não me lembro.
- Você tomou muita cerveja cara?
- Não.
- Então foi uma pizza estragada.
- Não, eu não consegui dormir mesmo por causa daquela cena. O do cara se arrastando com as tripas de fora, penduradas pela barriga.
- Ei, tá vendo aquele ali? Parece que levou um tiro e está sendo arrastado por um outro “rato”! Deve ter sido um cara do BOPE, eles atiram prá caramba! Vamos atirar naquele que está carregando uma trouxa na cabeça?
- Não. Pode deixar. Essa cena já é mais triste do que aquela do filme. Que futuro esses caras tem? Uma mãe não pode ver um filho assim.
- Assim como? Tá delirando? 
- Como um cara que levou um tiro em uma estrada de terra. É assim que a mãe dele vai ver!
- Mas eles vão aprontar mais confusão!
- É. Mas hoje não. Guarda o fuzil, vamos lá. Até um “rato” pode virar gente.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Conto Vinte e Três. Um Pequeno Conto Nordestino.









O Arcanjo da Chuva

O arcanjo calmo. É assim que era conhecido. De um azul brando. Virginalmente flutuando. Ele era um arcanjo que virou gente. Não foi por ordem superior não. Foi porque ele quis! Era especialista em chuvas e congêneres. Viu que a seca estava braba, e decidiu vir a terra para tentar ajudar. Sempre quis ajudar. E como as suas intenções eram boas, Deus deixou. São Pedro assinou embaixo.  Então Odílio foi. E fez maravilhas.
Isso foi quando ele era jovem. Como ele aceitou ser gente, começou a envelhecer como todo mundo. Ele agora, já velho, em uma feira livre de uma cidade do interior do Rio Grande do Norte, lembrava de suas antigas façanhas. Naquele dia de inverno o tempo estava ingrato. Não havia nenhum sinal de chuva. As margens de um rio quase seco, a fama de Odílio a muito já havia declinado. Ele no passado era considerado o maior “fazedor de chuva” do nordeste. Ainda se lembrava de momentos sublimes. Quando no Piauí conseguira debelar uma seca de dois anos inteiros! E houve um momento no agreste paraibano que conseguiu molhar quarenta quilômetros quadrados com uma nuvenzinha só. Inteiro mar sobre mudos céus. Era assim que via as nuvens. Podia sentir o cheiro delas. Algumas tinham cheiro de frutas. Outras a recifes e estrelas do mar. Podia jurar que uma vez havia sentido em uma cumulo limbo o aroma de enseadas africanas. Por ele ser um membro das hostes celestiais, ele sentia pena da dor do sertanejo. O protetor. O chamavam assim. Uma vez no interior da Bahia após uma bem sucedida prece, quando fez chover em uma terra que a muito não se via água, um menino apareceu com um peixe na mão:
-de onde é esse peixe, menino? -perguntou Odílio desconfiado.
-não sei não. Só sei que ele caiu do céu junto com a chuva, e caiu um montão de peixe. - respondeu o menino satisfeito.
“Isso vai dar confusão” ponderou. Realmente com o temporal, veio uma chuva de peixes que só faltou soterrar a pequena cidade. No outro dia estavam chamando Odílio de santo. Umas velhinhas carolas da cidadezinha organizaram uma procissão ate onde ele estava. Era um mar de velas e cantoria a noite toda. Essa foi de amargar! Ele odiava com todas as suas forças se chamado de santo! Será que essa gente não ia aprender nunca? Ele era um arcanjo! Das hostes divinas entenderam? Mas que saco! Teve que ir embora escondido na boleia de um caminhão. Ele lembrou-se desse caso, e não pode esconder um sorriso. A sorte e a injustiça. Dessa se lembrava também. Uma vez um fazendeiro contratou um pistoleiro para eliminar Odílio. Ele tinha proporcionado o inverno mais farto dos últimos tempos na região. Então por que tudo aquilo, simplesmente não conseguia entender o tamanho do ódio desse fazendeiro? Foi então que soube que o dito cujo havia “encomendado o serviço”, porque Odílio sem o querer o havia arruinado. O esperto vivia da desgraça do povo. Vendia sua criação e seus cereais por um preço exorbitante, indecente até. E com a vinda da chuva todo o seu esquema foi por água abaixo, literalmente. Vamos entender a natureza humana! Embora o pistoleiro tenha se esmerado na pontaria, as balas ricocheteavam no corpo do arcanjo e não causavam nem cócegas. A droga toda foi que esse imprudente havia estragado uma camisa novinha de Odílio. Depois o pistoleiro pediu até uma benção, uma reconsideração de seus atos. Mas quem abençoa é santo. Ele não era santo. Era um arcanjo.  
Essas lembranças queimavam como archote. Que ingratidão dos homens! Na velhice ele aprendeu a se virar. Estava aposentado pelo Funrural. Recebia todo mês o bendito salário mínimo. Nunca tinha bebido álcool. E nunca gostou do jogo. Mulher prá ele só servia para lavar, passar e cozinhar. Televisão então! Achava estranhas essas imagens que falavam. Achava que só diziam lorota. Imagine o homem ir à lua! Como é que podia isso, se lá na lua morava São Jorge? Ah ele não ia gostar disso, não. Imagine tanta mentira dentro de uma caixinha daquelas! O homem ir à lua! Então a velhice de Odílio era uma chatice. Um pé no saco.
Nesse dia, quando se lembrava de todas essas coisas, ele estava na feira da pequena cidade de Ceara - Mirim, perto de Natal. Um saco nas costas pela metade de coisas que tinha comprado. Estava pesquisando o preço da macaxeira, quando alguém deu três batidas com o dedo nas suas costas. Virou deparou-se com um velho baixinho de chapéu de vaqueiro e bigodão. O baixinho o olhou fixamente e perguntou:
-o senhor é o fazedor de chuva? Aquele que chamam de arcanjo da chuva?
-eu era agora eu to aposentado.
-mas quer dizer que não sabe mais fazer chover?
-eu sou um arcanjo. Eu faço água e empacoto!
-mas tá aposentado. Ou seja, já não serve prá nada, nadinha, nadinha?
-e quem disse isso seu bosta! Quem é você afinal? Um papa defunto esperando eu morrer é?
-Mas que nada. Eu sou um ex-fazendeiro. Hoje vivo à custa dos meus filhos. Sim, porque deixei todos muito bem de vida! E eles me devem. Entendeu?
-e onde eu entro nessa historia? Ei você, essa macaxeira é minha, eu vi primeiro! Ta vendo. Você já me deu prejuízo.
-mas nada igual ao prejuízo que você me deu há tempos atrás. Quando você fez chover em certo lugar. Quando botou um homem meu prá correr. Mas como eu tive ódio de você “seu cabra”!
-eu to lembrado da estória. Do pistoleiro e tudo. Quer dizer que foi você. E você quer se vingar agora. Depois de todos esses anos? Então pode começar, porque eu não ligo mais prá nada! Cansei da vida, ta bem? Pode mandar bala!
-mas quem disse que eu vim aqui prá isso? Tá delirando? E afinal não ia adiantar atirar, você não morre de bala. Morte matada passa longe de você! Na verdade eu vim te contratar! Imagine você que o prefeito de Quixadá ofereceu uma grana boa se eu levasse você até a festa do padroeiro desse ano. Que tal? Sócios?
-mas eu sou um arcanjo seu bosta! Como é que eu vou passar por um papelão desses? Não dá!
-mas quem vai tocar na festa é a Ivete Sangalo!
-não dá!
-dois mil e quinhentos reais.
-só pra mim?
-é.
-é que eu to mesmo precisado. Esse negócio, de chuva tá meio obsoleto sabe? Tá bom, eu vou.
-mas só tem uma condição.
-E qual é?
- você vai ter que ir vestido de santo. 
























domingo, 7 de novembro de 2010

Conto Vinte e Dois. Todo Cuidado é Pouco Meus Amigos.







Falta de Sorte
O lugar estava sujo, mas Gilmara não ligava. Estava acostumada com esse tipo de ambiente contaminado. Procurou na bolsa gasta um batom vermelho, enfeitou os lábios e penteou os cabelos quase totalmente brancos. Sabia que não era bonita como antigamente, mas tinha que trabalhar, ou não teria o que comer naquele dia. Mas que falta de sorte. Justamente quando estava prestes a arrumar um cliente, levara um tombo e torcera o tornozelo. Só podia ser obra de um olho gordo. Podia ser uma “zica” da Joana, aquela rival igualmente velha e decadente. Gilmara tinha sido uma bela mulher, ganhara muito dinheiro, mas perdera tudo durante sua vida atribulada. Poderia ter casado, mas não, preferiu a vida fácil, cheia de aventuras. Talvez se arrependesse, mas era tarde. Mas que merda, não queria pensar nessas coisas agora. O tornozelo doía muito e parecia uma bola roxa. Perto dela um encovado gemia de dor em cima de uma maca. Uma mulher de jaleco passou por ela levando uma caixa de seringas epidérmicas. Agora percebia melhor o ambiente e constatou que o corredor de azulejos brancos estava cheio de pessoas doentes, feridas e silenciosas. O cheiro era terrível naquele pronto socorro. Esperava aborrecida que alguém fosse atendê-la. Perguntou a alguém onde estavam os médicos e os enfermeiros. “Mas o sistema público até que não era mal” - tentou ponderar. – “Às vezes tinham inclusive ataduras e mercúrio”. Ela já havia passado por quase tudo na vida, tinha apanhado, tinha sido estuprada varias vezes, uma vez tinha levado uma navalhada nas costas por pura maldade de um cliente. Então para ela aquelas condições não eram tão ruins assim. Estava até sentindo um pouco de sono. Lá fora a noite se aproximava pesada e nuviosa. Os pacientes diminuíam até sobrarem no corredor ela e mais três pessoas enfastiadas. Tudo teria sido excelente, apesar de tudo isso, se um enfermeiro mais prestativo não a obrigasse a deitar em uma maca no corredor. Ela insistiu que estava bem. Ele disse que ela estava pálida, parecia que ia morrer. Nesse cabo de guerra verbal venceu o profissional da saúde. Ele gentilmente lhe deu um copo com água. Ela se acomodou e se mexeu mais um pouco no fino colchão. E quando achava que teria uma chance de tirar uma soneca, ela se sentiu estranha, a cabeça pesou, o seu corpo parecia afunilar-se, e tudo ficou escuro, incompreensível. Mais tarde quando os olhos de Gilmara se abriram, ela estava em uma banheira com gelo, em um local desconhecido. Do lado de seu dorso um grande curativo escondia uma complicada sutura. E naquele momento complexo, ela não sabia que estava sem um dos seus rins.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Conto Vinte e Um. Que Estrada é Essa, Gente?







Essa Mulher é Uma Auto-Estrada
Suas curvas perigosas se tornavam mais insinuantes a noite. Não havia sinalização que pudesse prever os perigos e surpresas daquele corpo.  Era necessária uma boa visão periférica. Certa experiência de estrada.  Uma ousadia de corredor. Um caráter que não visse obstáculos e nevoeiros. Ela tinha a exata noção de seus dotes, e seus buracos eram bem camuflados, qualquer um que transitasse por essa estrada, a veria como uma capa retilínea e uniforme. Macia e confortável. É certo que havia um histórico de acidentes, mas nenhum fatal. Apenas ferimentos leves nos corações desavisados. Como poderíamos dizer? Ela gostava de motoristas intrépidos, mas prudentes. Difícil entender essa contradição. Mas abominava manobras bruscas, a desentendidos e abusos. Houve um sujeito em dada ocasião, que por tanta paixão, sobrou em uma curva. Foi uma tremenda capotada, a lataria do peito sofreu um tremendo baque. Foi um desgaste irremediável.
Talvez essa beldade fosse assim, desse jeito, porque morasse perto daquela estrada de terra batida, acanhada e esquecida. Em uma pequena cidade do interior. Era um lugar bucólico, mas monótono como um pronunciamento presidencial. Por outro lado, ela era meiga como uma marcha lenta. Um dia de sol com ela, então, o sortudo poderia vislumbra a estrada que levava para o céu. O clímax em alta velocidade se fosse o caso. Um dia o irmão dela estava deitado em um descanso coruscante. Estava em uma rede colorida no alpendre da casa e rindo, fazia piada com os seus encantos, dizia que ela precisava de uma recapada, de um projeto de reengenharia, que as estrias apareciam na iluminação dos faróis, só para sentir a sua reação. Logo ela retrucou, disse que suas aduncas eram novinhas, que com ela não existia pedágios, que ele sabia que seus pais, aqueles que a fizeram eram construtores de primeira, que suas medidas e o fluxo eram de transito livre.
Ninguém esperava por essa. Num dia de janeiro, numa sexta feira, uma manobra de bastidores foi criada por alguém da Paraíba, um homem mais assanhado, para interditar aquela belíssima auto-estrada, ao acesso alheio. Aos pais um pedido foi expedido, que anunciava a pretensão de contrair núpcias com aquela obra prima. Tudo parecia que teria esse desfecho. Todavia, uma semana depois ela apareceu escorregadia e sinuosa. Ao perguntarem sobre o “Cabra da Peste”, ela foi tomada de uma raiva ferrosa, um ressentimento angular. Para ela o tal sujeito, se mostrou um motoqueiro irresponsável, que gostava de se atirar na soberba. Por essa postura, a beldade fechou-se em neblinas. Nunca mais queria vê-lo. E realmente esse sujeito insensato nunca mais foi visto por aquelas bandas. Ela continuou linda a desafiar a pericia de outros corredores. Afinal, em suas belas curvas não é qualquer um que sabe guiar não.



quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Conto Vinte. "Me Engana Que EU Gosto."











Despedidas e Tapas

Um
O amor pode ser ao mesmo tempo idolatria e odiosidade? Sempre fiz essa pergunta para mim mesmo, e nunca encontrei uma resposta satisfatória. Um relacionamento amoroso pode acabar como uma atroz despedida sem sonhos. Eu sei que posso estar extrapolando. Mas como ela diria: uma pessoa não é feita de papel. Eu conheci Claudia na rede social “Facebook”. Foi meio uma brincadeira, eu estava consciente de que ela tinha uma personalidade forte. Entretanto ela se mostrou muito pior do que eu imaginava. Palavras afiadas como adagas. Ela começou a me atacar. Primeiro porque sempre queria ter a palavra final sobre tudo. Depois pelo simples prazer. De controlar, de manipular, de morder como uma cadela no cio. Deixa-me explicar melhor. Eis a arma da amada. Ela usa o sexo. Do alto dos seus um metro e oitenta e cinco. Um corpo que é uma maquina. Olhos claros como um rubi perdido. Uma boca que parece uma armadilha, de tão atraente. E o que mais? Ah sim. Ela é muito inteligente. Com uma mente voltada para arrancar todo o seu dinheiro, até o ultimo centavo! Com ela é uma aventura sem sonhos de lírios. Quando nos separamos, ela começou a me perseguir. Tentou acabar comigo quatro vezes. Na primeira vez foi o acidente de moto. É ela sabotou o freio. Na segunda foi o sanduiche. Ela arrumou minha rede, me deu um perfume de presente, e depois me serviu um hamburg envenenado. Eu só acordei no hospital. Depois foi a facada. Essa pegou na mão. Mas ela queria me acerta no pescoço. E enfim uma tentativa mais sutil. Ela criou uma “estória”, nessa eu realmente quase danço. Nessa estória inventada por ela, eu era o amante ardente de Silvia, uma linda esteticista, uma conhecida nossa que era totalmente devotada à família, ao marido e aos dois filhos pequenos. O toque de perversidade, foi arquitetar a coisa de maneira que Walter o marido dessa moça, acreditasse piamente nisso. Ela forjou fotos, conseguiu introduzir mensagens de email no notebook de Silvia. Por fim, eu quase levo um tiro.  Querem mais? Mas vocês são meios sanguinários, não?!


Dois
Desfalece a noite. No condomínio fechado Claudia se encontra com Renato o gordo advogado, meio homossexual, diga-se de passagem, o amigo perseverante. Com angústia fria. Era assim que Claudia queria fazer. Uma vingança completa. Ele teria que sofrer:
-esquece isso Claudia. Você é linda, rica, qualquer homem quer uma mulher assim. E também ele está em outra. Eu soube que ele nem lembra mais de você!
-mas ele tem que lembrar. Ou você acha que vou deixar barato? Ele me deve.
-o que ele te deve? Você arrancou tudo dele! Praticamente deixou o pobre coitado só na tanga. Você está esquecida que fui eu o arquiteto de todo o processo, do litígio? O que você quer mais? O cadáver?
-e porque não? Ele ainda me deve. Odeio esse babaca.
-hum... Estou achando que você quer uma coisa que não pode ter. Tem certeza de que estamos falando da mesma pessoa? Ou você ainda está com o periquito amarrado?
-lá vem você com suas teorias sem sentido. Eu só quero que ele sofra. É pedir demais?
Diziam as más línguas que Claudia nutria uma paixão avassaladora por Eduardo. Mas que ela nunca admitiria para ninguém esse fato. Cada vez que ele era visto com uma mulher. Ela só faltava enlouquecer, diziam.  Ela nunca aceitaria que ele amasse outra mulher. Segundo essa versão dos fatos existia dias em que ela ficava completamente descontrolada. O sentimento de posse era como uma nuvem negra que eclipsava tudo que ela via, sentia, cheirava ou comia. Existiam dias em que ela simplesmente só pensava em Eduardo. Por isso ela tentou varias vezes se livrar dele. Tentou acabar com essa agonia. A de um amor estranho. Ilógico. Ela achava que eles não combinavam em nada. Nunca concordaram com nada.  “Diferentes bandeiras” uma amiga lhe disse uma vez. Existem relacionamentos amorosos que lembram nações inimigas. Cuja fronteira está sempre em litígio. Uma cultura totalmente estranha uma a outra. Mesmo nessa época de globalização essa idéia ainda prevalece. E ela procurou compreender com todas as suas forças, o porquê desse sentimento. Dessa obsessão louca. Ele não era nem o seu tipo de homem. Era meio calvo. Tinha uma barriga estufada. Um tipo nada atlético. Por isso e outras coisas ele tinha que sofrer muito. Pelo menos era isso que diziam as más línguas: que ela tinha essa paixão enterrada por dentro de seu corpo. Crescendo como um parasita ou um “alien” daquele filme de ficção cientifica.


Três
Na calada da noite. Foi dessa maneira que Eduardo conseguiu ver Claudia. De longe. Ele na penumbra. Morrendo de medo que ela o visse. Mas o que ele estava fazendo? Ela tentou matá-lo. E mais de uma vez! No entanto ele estava ali, o coração apertado, quase as lagrimas. Mas que masoquista de merda! Será que não aprenderia nunca? Essa mulher é o cão chupando manga! Com aquela calcinha de coelhinhos então! Que Deus tivesse piedade de sua alma! É só dessa vez, pensou, ele não a veria mais. Seria sensato. Teria vergonha na cara. Ou assim esperava que acontecesse.



Quatro

-Minha face. Eu não quero que você toque na minha face. Você é má. É traiçoeira. É uma serpente.
-mas quem disse que eu quero te tocar? Eu quero que você morra seu babaca. Como eu sou incompetente, deveria ter contratado um profissional para acabar com você.
-então porque não contratou? Por acaso perdeu o jeito. O sangue frio?
-não me provoca.
-senão o que? Vai rasgar a calcinha de coelhinhos, só de raiva?
-porque falou na calcinha? Você está ficando excitado?
-só se eu fosse louco. Um lunático. Um paria. Ai talvez você tivesse alguma razão!
-então para de me olhar assim!
-assim como?
-como se fosse me devorar, me chupar, como um sorvete de morango!
-ah o sorvete de morango é covardia! Não tem outra metáfora para usar? Essa e golpe baixo.
-só porque eu sussurrava isso no seu ouvido no quarto? Mas que fraqueza.
-eu não entendo porque colocaram a gente conversando assim. Ainda não entendi.
-e eu menos ainda! Ai! Estou com uma dor na coxa! Acho que é câimbra.
-mas que coxa! Quero dizer, são essas cadeiras. Só faltam aleijar a gente.
-eu sei. Por isso evito me sentar por muito tempo em qualquer lugar. Sempre foi assim, lembra?
-mas é claro! Lembro-me do dia que você ficou com os quadris doendo. Foi por causa daquela poltrona que comprou. Você pagou uma nota por ela, não foi?
-o dinheiro foi seu.
-mas você escolheu.
-está bem, fui eu!
-falando nisso, você está muito bem. É o cabelo, esse corte novo valorizou o seu rosto.
-acha?
-claro.
-saber o que eu queria agora? Um sorvete de morango! E você?    
-eu? Um roçar qualquer de seus cabelos.






segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O Escritor Maluco.: porque literatura?

O Escritor Maluco.: porque literatura?

Conto Dezenove. Todos Procuram Novidades.







Homo Sapiens

Maurice Larval veio para “o safári”. Ainda na França, estava convencido da importância dessa “caçada”, ainda mais, se tratando desse ambiente perigoso. Era fascinante. Trouxe a sua melhor câmera, a digital. Pensava que esse era o lugar perfeito, e além do mais, havia o elemento surpresa, que serviria para as fotos espontâneas. Pensava: “que a lente capte o animal. Pêlos enrustidos e lisos. A imagem dessa pequena figura ardente”. Depois de semanas de preparativos, Maurice chegou do vôo da França para o Brasil. No aeroporto do Rio de Janeiro ele encontrou Noel, amigo e organizador da “caçada”. Naquele dia de Agosto choveu na cidade, finas gotas durante toda a semana:
- mas que dia cinzento, onde esta o tempo maravilhoso que eu vi naquele cartaz em Nancy?”
Mas Noel o reanima. Diz que no dia seguinte, com certeza apareceria o sol. Pegam o van da agencia de turismo. Chegam ao hotel, onde eles se acomodam cansados e ansiosos.  Começa a chover mais forte, e seus amigos pensam em adiar a viajem ao local indicado para as fotos, mas o francês esta decidido, vai de qualquer forma. Ele pergunta:
- mas Noel, não existe nenhum risco? E se a criatura se sentir acuada, nós podemos ser feridos?
O amigo do francês coça a orelha, olha para o lado pensativo:
- na verdade ele é pequeno. É de pequeno porte. Mas eu estou preocupado com outras coisas.
Naquela tarde pegam um van amarela e se dirigem para o local onde o “animal” foi localizado. Passam por uma barreira policial no pé do morro. O carro para na barreira. Três policiais com capas de chuva se aproximam:
-para onde vocês vão? Essa área é perigosa. Não estão ouvindo o tiroteio lá na frente?
Noel conhecia os policiais e explicou o objetivo deles - não dá para a gente da à volta por baixo do morro? Estou falando naquela estradinha do deposito de gás! Vamos lá, quebra o galho da gente!
Os policiais fazem uma conferencia. E decidem liberar a passagem mediante um pequeno “pedágio”. Na passagem do deposito de gás, eles vêem dois corpos estirados na rua de paralelepípedos. Um grupo de policiais carrega mais um presunto e o joga perto dos outros. Maurice faz algum comentário sobre o Iêmen. O estrangeiro sentia-se excitado com tudo aquilo. Logo lhe veio às lembranças de um safári na áfrica central, quando ficou a menos de vinte metros de uma leoa que mastigava uma gazela. “O fotografo saiu finalmente para caçar” pensou. Após o tiroteio entre a policia e os traficantes, Larval pensou em desistir. Mas não. O barulho repetitivo dos fuzis automáticos só serviu para atiçar ainda mais os seus instintos. Para que tudo isso fosse motivo de maior orgulho, quando o resultado viesse.
Chegaram próximo ao local, e perceberam que estavam em um monturo de lixo perto de uma pequena estrada de terra que ia dar em um matagal. Desceram da van e carregaram o equipamento. Andaram um pouco até um barraco abandonado perto de grandes rochas cheias de pichações. Chovia fraco. No barraco de papelão, colado na parede, viram uma noticia anterior sobre um desabamento de encosta, de um mês atrás. A chuva caia fraca. Esperava que “ele” saísse da caverna. “A criatura”. O francês se perguntava se podia entender bem aquela situação. O aspecto de cripta que era esse lugar, um lugar ermo, no pé do morro. Onde alojam as pessoas, pseudos seres humanos. Seres humanos. Porque não permitiam que fossem humanos. Essa ideia rondava Larval como um campo de forças invisível. Em sua digressão, era como se em algum tempo passado tivessem expulso aquelas pessoas da crosta terrestre. Tal a imagem que ele se deparou. Pessoas tristes e acéfalas. E tudo isso, dava a tudo ali, uma sensação de surrealidade. E a ele um sentimento de deslocamento e hesitação.
Naquele ambiente de barracos semi destruídos, cheio de lixo, ali perto da caverna, preparam-se para as fotos. Todas as máquinas apontam para a entrada. Uma boca enorme e escura. A luz está boa. A chuva parou. E agora tudo é quietude. Uma sombra aparece. É a “criatura” que vem saindo na boca da entrada. Espantam-se com a figura. Maurice e Noel se entreolham. O menino agora na boca da caverna, quase nu, escuro e sujo. Olhar que se perdia. Esperava (em expectativa?), que lhe fosse atirado alguma coisa. Um pedaço de pão talvez? De cócoras, cabelos duros e desregrados, corpo esquálido arqueado, virou-se para a câmera. E pipocam as tomadas. Como tiros curtos e insensíveis. Um registro trágico. Eterno é incompreensível. Assim desejava o estrangeiro. E foi assim, que ficou. O registro para a posteridade. Para o “safári” de Larval. O menino, preso na foto, como um prêmio a ser “apreciado” por uma sociedade “globalizada”.