domingo, 7 de novembro de 2010

Conto Vinte e Dois. Todo Cuidado é Pouco Meus Amigos.







Falta de Sorte
O lugar estava sujo, mas Gilmara não ligava. Estava acostumada com esse tipo de ambiente contaminado. Procurou na bolsa gasta um batom vermelho, enfeitou os lábios e penteou os cabelos quase totalmente brancos. Sabia que não era bonita como antigamente, mas tinha que trabalhar, ou não teria o que comer naquele dia. Mas que falta de sorte. Justamente quando estava prestes a arrumar um cliente, levara um tombo e torcera o tornozelo. Só podia ser obra de um olho gordo. Podia ser uma “zica” da Joana, aquela rival igualmente velha e decadente. Gilmara tinha sido uma bela mulher, ganhara muito dinheiro, mas perdera tudo durante sua vida atribulada. Poderia ter casado, mas não, preferiu a vida fácil, cheia de aventuras. Talvez se arrependesse, mas era tarde. Mas que merda, não queria pensar nessas coisas agora. O tornozelo doía muito e parecia uma bola roxa. Perto dela um encovado gemia de dor em cima de uma maca. Uma mulher de jaleco passou por ela levando uma caixa de seringas epidérmicas. Agora percebia melhor o ambiente e constatou que o corredor de azulejos brancos estava cheio de pessoas doentes, feridas e silenciosas. O cheiro era terrível naquele pronto socorro. Esperava aborrecida que alguém fosse atendê-la. Perguntou a alguém onde estavam os médicos e os enfermeiros. “Mas o sistema público até que não era mal” - tentou ponderar. – “Às vezes tinham inclusive ataduras e mercúrio”. Ela já havia passado por quase tudo na vida, tinha apanhado, tinha sido estuprada varias vezes, uma vez tinha levado uma navalhada nas costas por pura maldade de um cliente. Então para ela aquelas condições não eram tão ruins assim. Estava até sentindo um pouco de sono. Lá fora a noite se aproximava pesada e nuviosa. Os pacientes diminuíam até sobrarem no corredor ela e mais três pessoas enfastiadas. Tudo teria sido excelente, apesar de tudo isso, se um enfermeiro mais prestativo não a obrigasse a deitar em uma maca no corredor. Ela insistiu que estava bem. Ele disse que ela estava pálida, parecia que ia morrer. Nesse cabo de guerra verbal venceu o profissional da saúde. Ele gentilmente lhe deu um copo com água. Ela se acomodou e se mexeu mais um pouco no fino colchão. E quando achava que teria uma chance de tirar uma soneca, ela se sentiu estranha, a cabeça pesou, o seu corpo parecia afunilar-se, e tudo ficou escuro, incompreensível. Mais tarde quando os olhos de Gilmara se abriram, ela estava em uma banheira com gelo, em um local desconhecido. Do lado de seu dorso um grande curativo escondia uma complicada sutura. E naquele momento complexo, ela não sabia que estava sem um dos seus rins.