domingo, 12 de dezembro de 2010

Uma Crônica Sobre a Escrita.







Coautor

Não espero. Acomodo-me, sento de forma espontânea, enquanto o relógio na mesa interroga as horas. O meu esqueleto no limbo e a minha consciência na cadeira, procuram, devassam, coabitam e finalmente encontram. É na cadeira de couro que passo a escrevinhar naquele dia. Da cozinha me vem um gostoso cheiro de café preto, feito sob medida para os meus excessos do crânio. Tento resolver de maneira limpa e sem alvoroço a questão das metáforas dos gatos que aparecem. É um texto difícil. Ele quer enganar-me. De quando comecei a escrevê-lo, pensava uma coisa e agora é outro animal. Involuiu até um ser antigo e extinto. As letras são pesadas cheias de pele morta. Do céu vem uma escuridão pré-histórica, de chuvas torrenciais que apagam as pegadas. Não posso perder o fio da estória. Deixar os meus personagens sem mim. Reencontrei as pegadas e as sigo.  Tento também de maneira limpa, resolver o velho problema da polia que emperra na minha cabeça, quando me dou a excessos de metonímia. Ao mesmo tempo em que bebo o meu café perto da cozinha. O sono me cerca como uma matilha na penumbra da sala. Agora vou fazer uma pesquisa para a minha estória. O auto-de-fé que me permito é o escrutínio do pátio em frente ao meu apartamento. É a sarjeta que margeia invisível, os dois lados do jardim. O jardim que é o mundo. Ah. Também pesquiso as rugas dos passantes, e vejo particularidades difíceis de descrever. Seria mais fácil medir o silêncio e ver se consigo ao menos sentir o sossego. Em alguns semblantes, percebo algo diverso. Será o ódio por trás dos pêlos, em uma dança improvável com a gravidade? Assim fazendo, descobrindo esse pequeno segredo divino, fico mais calmo e a polia trabalha de maneira perfeita. Sem perder segundos, domino a folha de papel e subjugo o mal. Destilo o pouco que compreendo do pátio e sua fauna esplendida. Apesar das margens de sarjeta e das nuvens escuras, que se avizinham. Esse é o mundo que criei. Onde mais eu teria essa chance de brinca como um deus? 
                                                     Carlos Bahiense