terça-feira, 28 de agosto de 2012


 
 
 
O Lugar de Prometeu  

                                                 

PRIMEIRA PARADA

Quando cheguei ao fim da escada, pude perceber o que era aquele lugar. Um mundo sombrio e fronteiriço. O transito de automóveis ainda corria célere atrás de mim.  Olhei para cima, e em uma placa confusa que bem poderia ser “Hardes” ou “Cantinho do Inferno”, não estou certo quanto ao nome correto porque tudo parecia estar misturado, a realidade com a ficção.  Se não fossem aquelas sombras que passavam, poderia jurar que estava diante da entrada do metrô. De qualquer metrô normal, e não da passagem do submundo. Entrei mais, descendo as escadas. Nas catracas eletrônicas, as formas escuras em fila, passavam direto, sem a necessidade dos tickets de passagens. Mais para dentro, brilhos incandescentes como fogo, saiam das paredes de rocha vulcânicas. Parecia uma caverna, que eu ainda não saberia dizer, com certeza, ser dentro da minha imaginação ou no ar circundante de nevoa. Passei pelas catracas como uma forma translucida. Caminhei até a plataforma abrumada, naquele exato momento que chegava um trem. E logo depois, as portas automáticas se abriram e personagens fantasmagóricos e estranhos como zumbis, com seus corpos carcomidos e putrefatos, saíram dos vagões.

Logo depois, pelos cantos dos olhos vi duas figuras que deslizavam naquele ar denso e embotado. Percebi tecidos transparentes que dançavam no movimento de corpos belos. Observei reflexos tênues de luzes que mal iluminavam aqueles rostos alheios. Pequenos movimentos nos cabelos daquelas mulheres pareciam pequenas serpentes de cores diversas. Enquanto as olhava, elas me viram e pude perceber olhos sedutores e faiscantes a estudar-me, a medir-me, querendo solidificar a minha carne. Podia adivinhar pensamentos medonhos, e então meus membros, os órgãos, o sangue e até o meu espírito, começariam a se enrijecer, como se quisessem tomar forma de mármore. Um fadário cruel, que meio confuso, percebi existir em minha mente. Apenas em minha mente. Meditava de forma calma. Admiti, nesse enleio exótico, que por ventura ficasse cristalizado na imobilidade eterna, para mim seria intolerável. O meu sangue misturado indissoluvelmente as moléculas de pedra. Não. Seria intolerável mesmo. Eu uma estatua trágica e hipotética, paralisado no exato instante em que caminhava curvado e pensativo. Enquanto examinava essa idéia, esse pensamento problemático, um sorriso de dentes pontiagudos de um rosto bonito de uma daquelas mulheres, me pegou de surpresa, e quase fui mordido por pequenas presas que se arremessou daqueles cabelos em movimento, a procura de meu rosto. Nessa imagem confusa, ficou gravado na memória, apenas o movimento frenético de centenas de formas alongadas que se cruzavam se enroscavam e se mordiam nervosamente, do alto daquela cabeça. Daquele admirável semblante. Depois dessa pequena divagação, elas já se afastaram e desapareciam em uma cortina de fumaça.

 

SEGUNDA PARADA

Caminhei mais, e ao virar as vistas, pareceu-me vislumbrar um rosto de mulher triste. Uma jovem solitária. Estava em um banco sozinha sentava ou pousada. Chamou a minha equívoca atenção, as penas marrons brilhantes que explodiam em brilho. Não era um pássaro. Também não era uma mulher. Se dissesse que era uma cabeça de mulher em um corpo de pássaro, talvez não estivesse dizendo uma inverdade. Quem sabe, a minha fantasia representasse o máximo de uma descrição naquelas condições. Talvez palavras não pudessem expressar o que via exatamente. E logicamente, por alguma razão duvidosa, essa descrição, seria incerta, uma vez que, algo parecido a um fluxo de consciência estivesse em jogo, nesse momento ambíguo. Ou poderíamos falar que nesse caso, tínhamos algo mais parecido a um monologo interior acompanhado de reflexões fantásticas e antigas. Formas arcaicas em profundas reflexões. Caminhei mais um pouco em direção a nevoa espessa, convicto que tinha que atravessar aquele lugar.

Achei melhor esperar o trem que iria para a zona norte, e parei meio aturdido. De um canto escuro, perto de uma máquina de refrigerantes, viam-se dois olhos de animal, achei estanhos aquelas pupilas que se destacavam na escuridão quase material. Naquele canto de paredes, dali subia no ambiente, um bafo terrível, um bafo bovino. Enquanto observava essa terrível maravilha, ouvi atônito, barulho de cavalgada as minhas costas. Vislumbrava homens em corcéis. Mas para meu espanto eram corcéis quase homens. Algo que desafiava o limite entre as espécies, que vinham de tempos remotos. Cavalgavam em grupos de três, enquanto passavam sombras de pessoas apressadas. Cartazes da Coca cola e do City Banks estavam coladas de modo desajeitado nas paredes de pedra.  Criaturas que pareciam crianças ou caprinos assanhados estavam misturadas com outros seres indefinidos e dançavam uma musica eletrônica, fazendo alaridos obscenos.  

Outro trem chegou. E se ouviu uma sineta de aviso. Dele saíram figuras cinzentas como estatuas velhas, cobertas com capuzes e capas, carregando urnas. Uma procissão grave e ritualística, que alguns semblantes pareciam despertar minha memória. Outras imagens antigas. Focos de chamas brotavam aqui e ali de algum ponto das paredes rochosas, e davam uma iluminação fantástica a aquele cenário. E para o meu pesar, no meio de toda essa cena irreal saída da lembrança de algum erudito, ali estava “o meu conhecido”. Aquela forma escura de asas, que posou e agora andava perto de mim com passos imprecisos. Por estranho que pareça, eu pressentia que “aquilo” havia mudado, ou que talvez a minha loucura tenha mudado, para uma manifestação menos violenta. O que significava tudo isso? De onde vieram esses seres que pareciam desafiar toda a lógica das coisas? E também onde estavam as pessoas normais? Será que tinha morrido, e agora estava no submundo espiritual? Será que o mundo tinha acabado, destruído de alguma maneira por aquela versão tosca saída de algum livro de mitologia? “aquela coisa” encostou a cabeça em minhas pernas e esfregou a sua enorme cabeça para um gesto de carinho. Não consegui segurar uma risada nervosa e aliviada.

 

TERCEIRA PARADA

O meu trem chegou e embarquei em um impulso, com idéias meio vagas e calafrios pelo corpo.

No interior do vagão, uma fila de figuras sentadas no escuro dava uma sensação indefinida de perigo. O silêncio era de sepulcro. Estava cansado e sentei-me também. Não me atrevia a olhar de perto aquelas “pessoas”. Não me atrevia a dirigir a palavra a ninguém. Às vezes com a velocidade, flashs de luzes penetravam no vagão, e conseguia perceber que as pessoas ali, não estavam propriamente vivas. Pareciam àqueles zumbis que havia visto na plataforma.  E um arrepio percorreu a minha pele. Da escuridão podia sentir quando algumas “daquelas pessoas” viravam a cabeça para olhar-me. Cabeças carecas. Corpos esquálidos que exalavam um odor desagradável de morte. Uma memória pareceu despontar e gritava: “campo de concentração”.

Oito estações depois eu desci. Andei três quarteirões para chegar à delegacia de policia.     

Enquanto me dirigia para a delegacia de policia, minhas lembranças voltaram ao rochedo, onde todo o sofrimento começou. O incomodo lugar de morte. Nessa cena, o meu corpo estava amarrado ao rochedo, a mercê da eternidade. Do tempo que passava caminhando. Um momento fugaz. Se alguém acendesse um fósforo, para oferecer uma vela em meu funeral, seria contado apenas o período em que levaria as chamas do palito de fósforo para se consumir. Algo que para o “grande deus”, fosse tão insignificante, como o primeiro segundo de uma criação, mas para o meu sofrimento, parecesse à grande eternidade de minha mente. Assim correu aquele tempo pirado, enquanto eu fiquei no rochedo. Nesse pensamento metafísico incabível, tremi o frio embaralhado com o medo, e me perguntava se “eles” haveriam de voltar. Se meus algozes desperdiçariam a oportunidade de ganhar mais algum dinheiro. Ou eu apenas ansiava que eles voltassem somente para vê-la, a minha esposa, e depois logo me arrependeria dessa veleidade. Em minha condição miserável, não sabia se desejava que eles voltassem ou não. Preferia o alivio de uma morte rápida ou a esperança duvidosa naquele sofrimento? Eis a duvida. Ou ainda, se eu permaneceria amarrado naquele lugar, à beira do precipício, e pudesse sobreviver. Eu sou um empresário respeitado tratado como um cão, deixado nesse lugar para morrer, pensando como se pensamentos naquela condição dessem perspectivas. Com a visão embaçada, consegui enxergar alguma coisa. Poderia jurar por tudo que era mais sagrado, que era uma pedreira, pois ao longe parecia vislumbrar estruturas como máquinas e tratores, mas que pareciam ter funcionado em outro tempo. Tudo parecia abandonado e remoto. E teria pensado que estava fora do mundo, se não fosse por aquela grama verde por entre as rochas que podia tocar com as mãos, e a visão daquelas pequenas flores amarelas que cresciam por ali, dando-me uma esperança, um vislumbre de realidade.

 

 

QUARTA PARADA

Já quase se fazia noite no rochedo. Senti alguma coisa no bolso da calça. Talvez fosse o meu telefone celular totalmente destruído. Era o telefone celular. Podia perceber que o aparelho estava destroçado mesmo. Procurei respirar lentamente, pois sentia dores agudas como se algumas de minhas costelas estivessem quebradas. Senti sangue coagulado na face esquerda. Meu olho esquerdo estava fechado de tão inchado, com um hematoma roxo e protuberante. Agora lamentava. O que me levou a essa situação. Tudo me foi tirado. E nesse momento confuso, senti falta dela. De seu cheiro. De seus cabelos. Da maneira de como o seu corpo moreno ficava suado depois que fazíamos amor. E com esses pensamentos eu quase esqueci. De outras coisas é certo. De outras preciosidades, é sensato dizer. Mas imaginava que determinadas coisas, teriam valores diferentes para diferentes pessoas. Alguns sentiriam falta do luxo e do conforto. No entanto, paradoxalmente, eu sentia mais a falta “dela” do que qualquer outra coisa. Pois é, determinadas coisas são insubstituíveis. Como a ilusão de uma união perfeita. Do ordenamento do mundo, que eu tinha e sentia quando estava com “ela”. E isso quase me fez esquecer qual era o verdadeiro significado da palavra traição. Não uma daquelas besteiras como um amante ocasional. Mas a cilada e a traição. O plano e a ganância. Depois de demorada reflexão, entrevia um quadro aterrador que custava a acreditar, mas que aquele rochedo, as feridas e a humilhação não me deixavam duvidar. Só conseguia ver na escuridão da noite, os rostos de minha esposa e do meu melhor amigo.

Deixaram apenas a minha pele de ruínas. Mas aos poucos minha cabeça começa a clarear. E detalhes que preferia não lembrar, vêm à tona. O mais estranho é a origem da dor torturante que vem das minhas entranhas e daquela imagem extraordinária. Daquela “forma negra” que aparece a cada seis horas, durante o dia, e começa a rasgar minha barriga e a devorar minhas vísceras. Recordo que da primeira vez, o vi de longe, uma enorme forma negra que planava. Esse “ser” tinha alguma majestade em seu vôo, deu algumas voltas em círculos a uns cinqüentas metros de distancia, acima de minha cabeça, e veio se aproximando devagar. E então pousou bem perto, asas abertas, um manto negro de penas, com os olhos amarelos como de um corvo. Na verdade, “aquilo” parecia com um enorme corvo, pelo menos era essa a imagem que eu imaginava ter diante de mim. A “criatura” instintivamente, para avaliar melhor o que estava a sua frente, virava a cabeça varias vezes, em um ângulo estranho. Aterrorizado senti quando pela primeira vez, “aquilo” rasgou o meu ventre com o bico e enterrou-se para se banquetear. É difícil de descrever o que senti naquele momento. A dor parecia queimar como num festim de chamas. Na ânsia de me livrar dessa medonha experiência, me debatia, e as correntes de aço apertaram mais ainda o meu corpo. Isso durou alguns instantes até que um desfalecimento providencial me afundou na escuridão.

Despertei no meio da noite. O suor me banhava da cabeça aos pés. As correntes haviam escancarado feridas por todo o meu corpo, mas de maneira inexplicável, da minha barriga não vinha nenhum sinal de que houvesse sido aberta e as entranhas a mostra. Não senti nada, nenhuma dor. E mesmo assim, não conseguia olhar. Não queria olhar. Na certa esse torpor que experimentava, era característico da aproximação da morte. O forte vento açoitava os meus cabelos e rosto, e uma nebulosidade crescente, fez com que eu adormecesse.

Uma manhã quente me surpreendeu, com os seus primeiros raios de sol. Meio tonto tive uma surpresa, que não sabia se era uma graça ou uma confirmação de minha loucura. O meu ventre estava intacto. Nenhum sinal de que no dia anterior eu havia sido aberto e banhado em sangue. Quando estava me sentindo quase feliz por aquela dádiva, “a coisa” voltou. E repetiu-se a mesmíssima cena fantasmagórica do dia anterior. E o mais estranho, essa cena se repetiu outras três vezes naquele dia, em uma sucessão de dor, desfalecimento e despertar. Foi assim esse inferno. E então, a noite, como um emblema de irrealidade, caiu mais uma vez jogando a minha pobre alma na vala do esquecimento.

 

 

QUINTA PARADA

Na manhã do segundo dia, mesmo depois de sair do sono, mantive os olhos fechados porque depois de tudo que passei, acreditava firmemente que enlouquecera. A fome e a sede estavam me matando com certeza. Mas pensava com certa lógica, que se não visse a tal imagem terrível, não sentiria nada, e aquela aparição não voltaria, não materializaria o meu penar. Mas mesmo com os olhos cerrados sentia que alguma coisa estava ao meu lado. E quando algo tocou o meu ombro, comecei a chorar. Eu tinha certeza que “aquela coisa” retornara e que logo iria recomeçar a sua refeição maldita. No puro susto abri os olhos, e ao invés do que esperava, divisei o rosto de um homem moreno de macacão azul marinho. Era um operário da pedreira. E nessa surpresa, o meu coração carcomido de dor, quase parou de bater.

O que aconteceu depois foi uma sucessão enevoada de ações que iriam levar-me a um hospital publico. Policiais tentaram um interrogatório na maca daquele hospital lotado. Disse que não me lembrava de nada. O que não era propriamente uma verdade. O que eu queria era ganhar tempo, entre aqueles policiais, poderia estar algum assassino, a mando “deles”, esperando só uma identificação positiva. Um médico e uma enfermeira apareceram e notaram através de um exame rápido, que eu, esse homem a sua frente, tinha uma excelente dentição e que, então, possivelmente, estavam diante de pessoa com certa posse, mas ficaram meio desalentados diante da minha “amnésia”; trataram-me de uma desnutrição causada por dois dias de privações e dos ferimentos causados pelas correntes de aço que marcaram no corpo desenhos de sangue seco e cascas de chagas. Em um quarto mal iluminado, deram-me alguns medicamentos de forma mecânica, sem maiores atenções ou palavras de conforto, e depois dos cuidados, saíram conversando alguma coisa sobre um fracasso em uma cirurgia e a possibilidade de greve dos funcionários do hospital.

Uma semana depois, estava me sentindo mais forte.

Mesmo sentindo a umidade das feridas, queria sair dali. No final de uma tarde escutei sirenes e pessoas correndo pelo corredor. Ouvi um enfermeiro dizer a outro, que um circo havia pegado fogo e que muitas pessoas estavam feridas. Aproveitando que a maioria dos profissionais estava mobilizada nessa operação, fugi. A rua à noite me acolheu sonolento e confuso, devido aos medicamentos. As pessoas eram meras sombras. Os automóveis velozes matizes de cores. Os sons chegaram a mim como que transportados por uma vaga. O meu rosto estava lívido de frio, e latejavam minhas feridas como lâmpadas que se acendiam e se apagavam em ritmo, no meu corpo, de maneira aleatória. Ao dobrar uma esquina de uma rua de iluminação precária, senti que uma forma escura sobrevoava a minha cabeça. Uma forma negra, sarcástica e enervante, como a fazer círculos de trevas. Procurei não me importar. Ao atravessar a rua quase fui atropelado por um automóvel. Agora tudo parecia ter um aspecto esquisito. Aquela rua parecia medonho. De uma lanchonete vinha um som estranho como o dilacerar que fazem animais carnívoros quando se alimentam. Enxuguei o suor frio de minha face com a manga da camisa, e diminui a velocidade dos passos.

 

 

SEXTA PARADA

Caminhava agora bem lentamente, começava a lembrar-me do dia anterior ao seqüestro e agora adivinhara como eles conseguiram dar o golpe. Tudo poderia ter começado naquele dia, na recepção da noite, na luxuosa casa de praia. Ela, a minha esposa, estava vestida de negro e suas pernas grossas de mulata chamavam a atenção. Pode parecer um contra censo, mas eu não conhecia muito bem a minha esposa, caso contrário, teria adivinhado que tinha me casado com uma mulher que gostava de futilidades, que era insaciável e que gostava de uma ostentação excessiva. Fato que me deixaria em duvida com relação ao sucesso do meu matrimonio. Se soubesse, talvez o meu futuro tivesse sido outro. O meu amigo, o advogado havia dito varias vezes que ela era a mulher ideal para mim. Agora percebo que ele tecia elogios como se fazem mortalhas, como uma vestimenta de pano de palavras bordadas. Ele era como um bordador, que dava uma forma branca de imaculada ao tecido, cheia de rendas e de flóreas imagens, apenas para encobrir um corpo que já estava sem vida e que logo iria apodrecer. Afinal para que serve uma mortalha? Uma figura de linguagem, para cobrir aquele relacionamento que no coração da minha “querida companheira” já estava morto.

Então o meu advogado, aquele falso amigo, disse palavras agridoces, quando na realidade em seu intimo, queria dizer outras coisas. Desejava minha mulher quem sabe, talvez, enquanto invejava a minha fortuna e a minha felicidade, e por sua vez, provavelmente ela mantinha um ressentimento secreto, por mim seu marido, sem uma razão mais coerente, fruto da frivolidade de sua mente. É assim que deduzo as coisas, com a minha cabeça confusa, as razões de todo esse acontecimento. Porque como ela poderia culpar alguém por ela mesma ser tão volúvel e vazia? Um envoltório. Um invólucro de uma nobre esposa, que de fato por baixo de tudo aquilo, era uma mulher suscetível a qualquer conversa mais excitante e as promessas de devassidão e doideiras. Sempre fui um homem avesso a aventuras. Uma pessoa simples nos meus objetivos, mas sólidos em meus passos rumo às conquistas. Fiquei milionário agindo assim. É certo que às vezes parecia meio distante, mas era porque, tinha receio de fracassar, de perder o meu posto duramente conquistado. Amava minha esposa. O problema foi que talvez, esse meu jeito, meio absorto e neutro, fez brotar um ressentimento tolo por parte dela. Ou infelizmente, sendo ela quem é qualquer outra desculpa pareceria correta, para aquela alma tortuosa de mulher fazer o que fez. Talvez mesmo que eu fosse perfeito, mesmo que a chama do entusiasmo me devorasse, ela me atraiçoaria, pois parecia que o vil advogado, havia despertado uma coisa secreta no intimo daquela mulher, algo mais condizente com os desejos de uma harpia. Mas tudo foi descoberto tarde demais. E de minha parte, a paixão foi a mais espessa das vendas para os olhos.  

 

 

SETIMA PARADA

Fiz uma retrospectiva rápida. Tudo aconteceu em uma manhã de sol. O meu motorista havia chegado cedo à minha cobertura de luxo. Tomei frugalmente o meu café da manhã com “minha esposa”, me despedi dela, peguei a minha pasta de prata e desci o elevador. O que mais? Deixem-me lembrar. Ah sim. Entrei no carrão preto e dirigi-me para o escritório pela avenida principal. Dentro do automóvel, comecei a folhear uma revista sobre economia e a pesquisar a tortuosidade da linha do gráfico do mercado de ações. Era um habito meu. Uns vinte minutos depois, enquanto eu estava concentrado nos números da bolsa de valores, o carro deu uma parada brusca. Tudo foi muito rápido. Apesar da habilidade do meu motorista, duas caminhonetes fecharam o automóvel, um a frente e outro atrás. O carro a prova de balas poderia resistir por alguns minutos até a chegada da policia. Mas nenhum tiro foi disparado contra o automóvel. Oito homens encapuzados e armados de pistolas e fuzis desceram das caminhonetes. Quando nos cercaram, o motorista abriu as trancas automáticas das portas. Enquanto eu esboçava um olhar de surpresa e incredulidade, o meu motorista fiel, amigo de muitos anos, com os olhos marejados, apenas esboçou uma palavra: “desculpe senhor, ela me obrigou”. Enquanto eu era carregado à força por aqueles homens pude ver, como em um desfecho sinistro, um sujeito se chegou perto do meu motorista e desferiu-lhe um tiro na cabeça. Extinguindo a vida de um pai de cinco filhos. A pergunta agora girava em torno do que teria acontecido para que ele tivesse aderido a essa trama. Ele havia dito que “ela” o havia obrigado. Ela quem? Obrigado através do que? Eu só comecei a juntar as peças desse quebra cabeça no outro dia, após uma surra atroz, e depois que fui levado para a pedreira.

Eu estava mal. Os bandidos estavam todos usando aquelas mascaras de teatro: a alegria, a raiva e a tristeza. Um seqüestrador baixo, forte e com uma voz rouca, estava reclamando pela demora de receber a sua parte. Em sua fúria, inadvertidamente havia dito o endereço do “contratante”, que era por uma “incrível coincidência” o endereço do meu amigo advogado. De onde eu estava, eu vi quando o homem baixo gritou e gesticulou, balançando uma pistola numa das mãos, enquanto eu estava deitado de costas amarado e amordaçado. O bandido havia dito em alto e bom som se aquele “casal de animais” estava pensando em enganá-lo, que ele iria deixar aquele advogado nu e sangrando na porta do fórum e que aquela “cadela mulata” iria vender o corpo até pagar o que lhe devia. Aquele bandido estava com muita raiva deles. Talvez por isso, eu tenha sobrevivido, contra todas as expectativas de meus algozes. Os outros do bando haviam dado ao homem baixo e forte a incumbência de decidir sobre a minha morte. As propostas eram arrepiantes. Um sugeriu que cortassem o meu corpo vivo e desse aos cães. Outro sugeriu que simplesmente dessem um tiro na cabeça do “pacote” e colocasse o corpo em um carro e depois o incendiasse. Um terceiro falou que bastaria usar “o método tradicional” de colocar-me vivo dentro de um grande saco de estopa cheio de gatos raivosos e serpentes venenosas, e depois jogar tudo no rio amarrado a pesadas pedras.

 

 

OITAVA PARADA

O baixinho pensou, e aborrecido decidiu, por alguma razão, ele mesmo fazer o serviço. Colocaram “o pacote” na mala de um carro e ele sozinho, o levou. Por uma razão o raptor estava irritado com o “casal”, e por conta disso, decidiu-se por fazer algo inusitado, me amarrando ao rochedo da pedreira como uma espécie de oferenda a Zeus, o ídolo preferido do Monte Olímpio. Agora eu me lembrava de tudo. A minha memória voltou com todos os detalhes e cores. Recordo-me que o baixinho havia me entregado em uma espécie de ritual a Zeus. E imaginei que, o baixinho, partindo de um raciocínio sofistico inconveniente como uma pugna, avaliava: se eu sobrevivesse era porque Zeus assim quisera, e eu poderia denunciar o casal, e o bandido teria a sua vingança, sem sujar as mãos. Uma vez que, ele estava usando a mascara da tristeza, e eu não poderia reconhecê-lo. Se eu não sobrevivesse, era porque a sua oferenda havia agradado por demais o deus. E tudo estaria também a contento para ele. Pelo menos foi esse o meu raciocínio. Apesar de minha tentativa de entender essa mente, nada parecia ser coerente ou real, ou eu estava em um pesadelo, ou o mundo é que era um pesadelo. E as coisas estavam transcorrendo naturalmente como são, e apenas eu não percebia esse fato. Mesmo assim, apesar de minha patética tentativa de entendimento de tudo isso, esse bandido, vangloriava-se de assassinatos singulares, e apesar de holocaustos e rituais, ele era vingativo mesmo. Por causa de sua propensão a coisas terríveis, pensava em uma pequena e singela vedetta sobre aquele casal impuro, independente de minha sobrevivência. Pois eu era descartável. Vamos entender as tortuosidades, de neurônios embebidos em um caldo qualquer, daquela mente criminosa.

Depois dessas lembranças que vieram céleres, fiquei chocado. Meio tonto. Aquele ar meio saturado de um odor característico, com algo que lembrava enxofre e alcatrão, quiçá, tivesse algum efeito nefasto sobre a minha enxaqueca. O certo é que a tontura tivesse mesmo como origem o medo bruto, que se apoderou de mim. Tentei acalmar-me, afinal tinha conseguido fugir de todos, e estava ali incógnito. Eu estava deitado em posição fetal, vestido como um mendigo, mas me decidi sentar e pensar, agora havia me situado e percebi que estava sentado no chão imundo daquela rua mal iluminada. Pensava para onde iria. Para uma delegacia de policia é natural. Mas teria que pegar um ônibus ou metrô. Estava no ato de pensar quando a minha visão deparou-se com uma aparição que gelou o meu sangue nas veias. Perto de mim, apenas a dois metros de distancia, aquela grande “forma negra” me observava com aqueles olhos infernais. Eu já combalido, retesei-me a espera do primeiro ataque excruciante. Mas estranhamente “o pássaro” ficou parado olhando-me, como se fosse um animal de estimação, dócil e calmo. Mesmo sendo intensamente indesejável. E ademais, aquela forma estranha e descomunal era uma visão medonha e causava calafrios. Aproveitando que aquele ser, havia se transformado de monstro em um cachorrinho de senhora, me levantei e corri o mais rápido que pude. Para dentro da noite.                      

 

 

ULTIMA PARADA

Estava como uma lousa fria, deitado na entrada do metrô. Havia adormecido de tanto cansaço. Dormia. E foi com repulsa verbal em meu sonho, ou seria melhor dizer, pesadelo, que comecei a praguejar contra tudo e contra todos, depois de toda a retrospectiva em minha mente. Como pude ser tão burro? Como pude errar tanto? A minha cabeça latejava pelas feridas. E dentro desse pesadelo enevoado, “a forma negra” voltou da bruma, e mais uma vez fui submetido a ele, para que devorasse minhas entranhas. Nesse pesadelo eu era um silício de ossos. Onde as lembranças do amor se moviam. Acordei. Um vento frio transpassava-me a coluna vertebral. Pensei nos filhos que nunca tivera com minha esposa. Porque pensava nisso agora? Como um jato de fogo movia-se as imagens do passado. Um jato de fogo e impaciências. Logo saberia que subitamente havia despertado daquele pesadelo para entrar em outro, aparentemente mais real.

Como eu estava perto da entrada do metrô as altas horas da noite, pensei que talvez fosse melhor ir nesse transporte mesmo, tentei falar com algumas pessoas apressadas que passavam para pedir- lhes emprestado algum trocado para a passagem. Mas eram sombras que me ignoravam. Figuras escuras e nubladas. Logo eu, que tinha tudo, estava agora como um indigente. Então me decidi a descer as escadas do metrô. Ou melhor, dizendo, “a caverna”.

 

Foi assim que relembrei todo esse processo nefasto, que quase culminou com a minha morte e a vitoria daquele casal adultero. Mas estava deprimido. Desconfio que talvez, de alguma maneira, penosamente, mereci esse formulário da morte. Essa loucura que me acometia. Talvez eu sentisse um anseio de autocomiseração. Se tivesse sido um marido melhor, talvez nada disso tivesse acontecido. Ou estava enganando a mim mesmo com essas palavras? Pois na dor, procuramos respostas para o nosso próprio sofrimento. Agora, após todos esses acontecimentos, era como se uma dança de insetos imaginários começasse a molestar-me. Minha própria imprevidência, a descoberta terrível das verdadeiras razões de meu seqüestro e tortura, pareciam insetos ferroando a minha pele e ossos.  Enfim. Culpas dentro de culpas. Mesmo agora, liberto do rochedo, “aquela coisa” me acompanhava. Visível ou não. Inteiro ou não em minha cabeça. Às vezes era apenas uma sombra, em outras vezes era de uma nitidez de detalhes corrosivos. Aquela sombra faminta que se banqueteou de minhas vísceras imaginarias, naquele local de morte. Apenas alguém com uma mente enferma poderiam imaginar um “ser” assim, ou tentar explicar, esses acontecimentos extraordinários. Não sei ao certo sobre coisa alguma. Se minhas idéias tem alguma coerência ou se estava tentando dar coerência a coisas naturalmente incoerentes. Sem saber nada de naturalismo ou, seja lá, o que pudesse nomear a ciência que estudava esses tipos de seres. O porquê “daquela coisa” se cansar de comer as minhas partes imaginaria, e que agora, por alguma razão hermética, era um companheiro improvável e sinistro. Se na realidade não se alimentou em nenhum momento de mim e isso teria sido um delírio causado pelo meu sofrimento. Eis a duvida. Na verdade, eu duvidava apenas de outros acontecimentos e não da existência daquela coisa negra de asas descomunais. Afinal, esse “ser”, ou “pássaro” ou “fantasma”, estava caminhando naquele momento a meu lado como um guarda costas, e era de uma nitidez e de uma materialidade, difícil de ignorar.

A maior surpresa de toda essa historia ocorreu quando finalmente cheguei à delegacia, e procurei um amigo da policia da zona norte. Quando cheguei à frente da delegacia o “estranho acompanhante” sumiu. Eu não me importei com isso, pois já estava me acostumando com essa insanidade. O meu amigo policial pegou-me pelo braço e cuidou de me acalmar. Primeiro me ofereceu uma cadeira. Depois um copo com água. E ainda me ofereceu um cigarro esquecido de que eu não fumava. Ao apresentar a denuncia de tentativa de homicídio, o intento quase realizado a mando de minha esposa e o amigo advogado, eu tomei conhecimento da inverossímil historia de um grande pássaro negro que havia devorado quase que completamente os corpos de um casal. De como esse animal estranho, tivera a inteligência sobrenatural, de penetrar nos aposentos daquele casal desprevenido naquela mesma manhã. Desse ato inacreditável, restou como prova material, uma gravação de uma câmera de segurança do hotel, onde se podia ver bem nitidamente uma forma escura bem maior que um abutre, e que saiu estraçalhando o vidro da janela.  Ao mostrar-me os documentos daquele casal, eu finalmente percebi que o meu delírio era capaz também, de atos de vingança. E para que uma tragédia dessas estivesse completa, bastaria tão somente, à ajuda, imprescindível dos deuses.