domingo, 2 de setembro de 2012


 
O Arrependimento Homicida

 
A última ceia de perfídias. O hospital central. É na ala psiquiátrica que vamos, mais exatamente ao quarto quinze. No quarto, Jose Ribamar acaricia um urso de pelúcia. Ele parece estar meio adormecido, mas na realidade está lembrando. Existem coisas que quer lembrar avidamente, mas existem outras coisas que quer esquecer com toda sua força. A própria luz solar que penetra no quarto lhe trás imagens do passado: o primeiro dia na academia de policia, o estande de tiros, a farda cinza azulada, e as cadencias marciais. Dentro desse caleidoscópio mental, coisas terríveis afloram. Ele fecha os olhos para esquecer. Mas não adianta. As imagens invadem o espaço além dos seus olhos e se chocam com as paredes fazendo um som de estrondo. Nesse processo ele começa a chorar às vezes bem baixinho num choro de alivio e às vezes com gritos de desespero. A culpa o consome vivo. Há um fedor pegajoso, que ele sente, ou pensa sentir. É um odor de morte. Por mais que se banhe, que limpem o quarto isso o acompanha a todos os lugares e isso é pior que os risos que pensa escutar. O som de tiros disparados vindos do nada. Algumas vezes em um reflexo condicionado, abaixa a cabeça rapidamente, como uma ação para se livrar das balas que zunem pelo quarto vazio. O tenente Daniel um jovem medico de vinte e oito anos, procura acalmar José que está agitado, o sargento parece ver coisas. O medico pergunta se ele tomou o remédio, ele diz que sim e fecha os olhos.

A primeira morte sombria. É isso que está lembrando agora. Ele se vê no beco da favela no complexo do alemão. Ele é jovem, ainda um soldado. Eles são cinco de um grupo total de sessenta, que naquele dia sobem o morro em represália a um comboio do mal; essa investida dos traficantes rendeu cinco mortes de inocentes lá em baixo. Os cinco policiais de coletes a prova de bala estão carregando fuzis automáticos e pingam de suor, o sargento do dia grita. “tem gente correndo na laje!” a tensão aumenta assustadoramente, José é impelido pelas costas por um mais antigo:

-vamos lá garoto. Aponta para o alto. Tá vendo? É um soldado! Tá vendo a ponta do fuzil?

-não é não. É uma criança com uma vassoura!

-mas você é panaca mesmo. Ele vai fugir, atira, agora!

-mas é uma...

-atira agora seu merda!

No som do tiro, José abre os olhos. O jovem médico está olhando para ele, lhe oferece um copo d’água, o tenente pergunta como ele está se sentindo, o sargento olha pelos cantos dos olhos. Na porta meio aberta, ele vê um vulto bem nítido de um garoto de seus catorze anos com a cabeça estourada, a face suja de sangue coagulado. Essa imagem dura uns segundos. E então José se deita na cama e vira para a parede, para não ver mais nada.

Para uma alma que quer salvar-se do esmagamento celeste, esse sentimento é um peso que não pode ser medido. Esse, o peso da loucura, em um desfile surreal e humano. No diagnostico de esquizofrenia, colocaram em letras bem grandes: acessos de paranóia e delírios. Mas José não entendia muito bem disso, ele só sabe que nas viaturas, no quartel, e até em casa, pessoas estranhas vinham falar com ele, e o mais estranho, e que essas pessoas lhe eram familiar, de alguma maneira as via. Uma vez no quartel ele chamou um colega:

-ei Romário. Quem deixou esse neguinho entrar?

-que neguinho homem?

-aquele que está ali perto da parede! Ele tá todo sujo! Tá sujando tudo!

-mas do que você tá falando, não tem ninguém ali!

E então as visões começaram a ser mais sangrentas e inusitadas. Um dia estava à paisana em um banco, de repente sem mais nem menos puxou do revolver calibre trinta e oito que estava na cintura, começou a gritar com alguém invisível, o banco estava lotado de pessoas, a situação só foi contornada por que um capitão o reconheceu, e conseguiu acalmá-lo.

“Não me obrigues ao beijo do ouro ardente e o preço do lingote frio”. Era sempre isso que dizia quando alguém o contratava para algum “serviço extra”. Havia lido essa frase em uma revistinha em quadrinhos, achava que era do faroeste americano “Tex”, ou outra qualquer, mas achou legal a frase, e começou a usá-la como uma piada irônica, isso foi antes de ficar realmente doente, quando já não conseguia se controlar. Uma noite no hospital, quando o jovem médico veio vê-lo José estava com um olhar parado e balançava o corpo levemente em um embalo de segredos:

-doutor.

-sim sargento, o que é.

-o senhor já matou alguém.

-não José. Eu sou medico lembra? Eu salvo vidas ao invés de tirá-las.

-eu já. Muitas pessoas. O senhor sabe quanto vale um neguinho?

-não.

-uma vez eu cobrei dez grades de cervejas. Será que foi muito?

-o que você acha? Quanto vale uma vida? Por acaso isso lhe fez algum bem?

-não. Eu não consigo entender como pude fazer isso. Eu lembro que, nem tomei as cervejas. O cara morreu antes de me pagar.

A forma empenada. Ele começou a vê-la pelos cantos do hospital da policia militar. Vinha andando, imagem distorcida, caminhava quando todos estavam dormindo. Esse vulto chegava perto dele e fazia cobranças absurdas! José reconheceu o rosto, era do traficante “Toinho de Duque de Caxias”. “O que esse maldito queria? Eu o matei há oito anos!”. José fugia dele, Corria pelos corredores, “como é que vou arrumar uma motocicleta para você? Você tá morto! Vai amolar o diabo!” O revolver seco e o sangue profundo: essas duas imagens não fugiam de sua mente, aquela foi uma morte demorada, o cara agonizou durante duas horas. Que noite.

Alguma coisa Corroia sua alma. O naufrágio da alma. José estava arrependido de tudo que fizera, mas eles não entendiam, continuavam a persegui-lo, a cobrar, traziam coisas estranhas, o ursinho de pelúcia desapareceu, José acreditava que alguns desses malditos haviam roubado o ursinho, ”eles só querem me sacanear.” Pensava enquanto comia o seu almoço: purê de batatas com carne moída. Parecia um “presunto” que vira uma vez.

Promessas cavernais são proferidas. No segundo dia de carnaval, Jose estava aflito. Logo depois que acordou, percebeu que o quarto estava cheio, estava ali o homem da barraca de angu, o soldado Matias forte e gago, cinco moleques que haviam sido levados para “o aparelho de microondas”, o juiz da comarca de Campos, a bela moça de manguinhos, dançando feliz um samba, o carrancudo “rato velho” cheios de correntes de ouro, O menino da vassoura e outros meios nebulosos. José escondeu a cabeça debaixo do lençol, mas não adiantou, eles ficaram o carnaval todo. O jovem médico voltou na quarta feira de cinzas, e procurou os relatórios e as prescrições:

-enfermeiro!

- estou aqui tenente.

-esqueceram de dar a medicação ao paciente do quarto quinze.  Ele passou o carnaval todo careta?

-Eu também estava de folga tenente.

-será que o José está vivo?

O tenente encontrou o seu paciente deitado no chão, pratos e comida espalhados pelo quarto, o travesseiro e o lençol estavam rasgados, o corpo estava só de cuecas e ele estava todo urinado. O medico balançou a cabeça. “vou dar o remédio agora.”.

Jose disse para o doutor que alguém estava tentando “contratá-lo”. Era a lembrança mais nítida daqueles dias, fora a vontade de vomitar, até que tudo correu quase normal:

-doutor o quarto está sujo de sangue?

-não José. Por quê?

-aquela gente toda machucada e pingando. Eu pensei que tinham sujado tudo.

-então a festa foi grande, em?

Dois meses depois um novo “personagem” entrou na vida de Jose. Uma jovem e sensual mulher lhe visitou. Ele a via meio turva, enevoada, mas o que ele mais estranhou foi que ela tinha um rosto que lembrava sua mãe:

-quem é você mulher?

“eu vim te ver. Mas você não parece muito feliz. E os seios, você gosta?

-o que você quer afinal? O enfermeiro já vai chegar.

“você não sabe? Sabe sim. Sabia que sou sua mãe? Ou você esta vendo uma sombra? Ou você prefere um cachorro?”

-não! Não se transforma não! Estou com medo! Você vai me morder! Socorro!

“está bem. Pronto. Eu sou uma mulher de novo.”

-por favor, vai embora!

 

Essa foi à fase dos amores sepulcrais. Os delírios eróticos ganharam em intensidade e estranheza. Eram arrepiantes. Bichos e pessoas se misturavam, objetos cotidianos ganhavam vida e mortos pareciam ganhar a sua intimidade com sexo. Decidiu-se mudar o medicamento, e por algum tempo o sargento José teve uma relativa paz. Ficou apenas o aperto no peito, um sentimento profundo de angustia. Como alguém sem conhecimento psiquiátrico poderia dizer que, esse paciente estava apresentando alguma melhora no quadro clinico? Às vezes aparecia alguém, vindo não se sabe de onde, uma sombra, e dizia que ele estava bem, e então ele acreditava, José estava mais calmo. Em alguns momentos poder-se-ia dizer que ele estava até feliz. Talvez a mudança na medicação tenha surtido algum efeito. O fato de nota nesse período foi à visita do filho de José Ribamar, um rapaz alto e magro, de óculos pretos:

-oi pai. Como é que o senhor estar? O medico nos disse que o senhor tem melhorado.

-oi filho! Na verdade estou me sentindo muito bem. Dentre em pouco vou poder voltar à ativa. Eu recebi até uma proposta de serviço!

-ah foi? E que proposta é essa? Quem fez? O doutor não disse nada sobre uma alta medica!

-isso porque o tenente é muito discreto. Ele não gosta de espalhar noticias. Principalmente porque ele sabe que esse meu “serviço” é sigiloso, é da policia. Entende?

-tá bem pai. Tá bem.

No outro dia o filho voltou ao hospital com uma sacola de frutas para o pai. O rapaz se encontrou com o jovem médico e os dois foram para o quarto quinze. Quando abriram a porta José está de pé no centro do quarto vestido com o seu antigo uniforme:

-o que você está fazendo vestido de uniforme José?  Cadê o enfermeiro?  Eu mandei ele te medicar! Mas que coisa rapaz!

-não se preocupe doutor. Eu estou pronto. Eu fui contratado para fazer um serviço, ou melhor, um trabalho cívico, eu sei que eu vou ganhar muito dinheiro - dizia com os olhos vidrados - vou ficar rico. Meu filho você também esta aqui! Você vai ficar orgulhoso de mim! Eu fui incumbido de “apagar” o pior bandido de todos, e esse realmente é merecedor da morte, e eu estou feliz de fazer esse serviço – falando rapidamente como se o tempo fosse evaporar - vocês me entendem? Ele merece! Pela primeira vez vai ser um que realmente merece!

-mas pai...

-não se preocupe meu filho. Nesse pedaço de papel na minha mão está o nome do canalha. Pode deixar que eu não vou falhar. Eu não vou decepcionar vocês!

 

Jose atirou o pedaço de papel ao chão e fez um esforço para deixar o quarto. Ele queria ir. Ele precisa ir. Para fazer “o serviço”. Mas eles conseguem contê-lo. Foi preciso a ajuda de mais três enfermeiros para refrear o sargento. Aplicaram-lhe uma injeção de tranqüilizantes e ele foi levado para outra ala acompanhado do filho. O medico entristecido apertou os lábios, pensativo “mas ele estava melhorando! Que lastima!” o jovem médico abaixou a cabeça e viu um pedaço de papel. Pega. Ao abri-lo estava escrito com a letra do sargento: alvo José Ribamar.

E foi essa, a desesperada tentativa de uma alma de alcançar algum tipo de redenção. Para tentar consertar as coisas, de punir a si mesmo por tantas desgraças. Para que uma pessoa perturbada se salvasse da danação eterna. Para que alcançasse o céu espiritual ou que houvesse ainda uma alma, a sua alma a sete palmos de altura, perto do céu imaginado.

 

 

 

 

 

Nenhum comentário: