O
Broche de Turmalinas
É
quinta feira, dia quinze de julho, e dentre em pouco serei morto. O tempo
tomará o meu corpo e o encherá de flores brancas. Aquelas de enterro. Estou em
um local que chamam de “germinário”. Pergunto a outro preso o porquê de chamarem
assim esse lugar. Eu e alguns outros apenas a chamamos de corredor da morte,
mas estranhamente deram um tom aprazível para um lugar tão trágico. Michele,
minha advogada procurou me consolar, acredito nela, ela até chorou, ela fez o
que pode. Ela me disse que aqui, não podemos esperar muita coisa das
autoridades. A palavra dos especialistas é a lei e eles constataram (não sei
por que passe de mágica) que eu era culpado do crime. Os jurados decidiram por
unanimidade a partir dali ela não conseguiu vencer na apelação do processo,
estava exausta e frustrada, queria ter feito mais. Vim para esse país à procura
de que? É necessária uma boa dose de loucura para se atirar assim, em uma viagem
ilusória, em promessas de coiotes, de imagens de revistas e shows de televisão:
aquelas figuras, de famílias sorridentes, ruas limpas, carrão na porta. Como eu
pude acreditar? Ainda mais porque tenho alguma instrução, sou um professor de
historia desempregado, o imbecil que saiu de Tijuana, ou melhor, dizendo de Mossoró
no Brasil e atravessou a fronteira do México. Sobrevivi à travessia. Mas, acho
que não vou sobreviver ao sistema. Porque na realidade eu sou o invasor, aquele
que veio à casa de alguém sem ser convidado, um penetra na festa, mesmo
injustiçado, hoje sei que é errado entrar assim em um país, clandestinamente,
como um ladrão. Acham que eu sou culpado de assassinato. Mas e daí, se não
acreditam que sou inocente? Dentre em pouco o tempo resolverá todos esses
problemas. E eu serei morto.
Sexta
feira, Jack o guarda, me trouxe mais uma carta de Vermont, um amigo que conheci
na prisão, ele parece ser uma boa pessoa. A sua apelação também falhou. Ele
acredita que tem mais um mês pela frente, logo fará companhia a mim, iremos
para aquele lugar desconhecido, dentro de caixões. Permitindo-me um tanto de
poesia: irei onde germina as almas cansadas. Inocentes ou não. Nesse momento,
após ler a carta, sinto apenas o medo, minhas mãos tremem de ansiedade e
espanto, posso ver a solidão na vastidão desse corredor da morte. É nesse
momento, em que estamos sozinhos, longe daqueles que amamos que começamos a dar
valor a pequenas coisas, que antes pensávamos serem banais. Por exemplo: quando
eu via as pessoas olhando o céu a noite, achava a maior idiotice. Porque perder
tempo olhando estrelas, se as coisas acontecem toda à hora ao nosso redor?
Achava muito piegas e uma perda de tempo. Agora sei o preço que tem uma estrela
que brilha no firmamento, e como é importante o simples fato de vê-la brilhar.
Às vezes me pergunto como seria a face de Deus, se para nós só existe o gelo do
espaço. É assim que se oculta o mistério? No gelo do espaço? Eu acho melhor
deixar, por hora, falar o mistério apenas na imaginação, porque não há pensamento
ou ansiedade que possa crepuscular essa idéia, sobre a inevitabilidade da minha
morte.
Foi
em meados de julho, que aconteceu “aquilo”. Eu estava deitado, lendo uma
revista playboy que trazia uma reportagem sobre a cultura brasileira. A minha memória
viajava nas palavras, e tentava esquecer toda essas coisas terríveis que vivia.
Um guarda apareceu e disse que me preparasse que iria ver o diretor. Fiquei
extático de pavor, pensei que eles tivessem antecipado a minha execução, mas a
minha advogada não me alertou sobre esse fato. Mil coisas passavam por minha
cabeça. Quando vieram me buscar, mal consegui sair da cela tal o pavor e a
tensão, “Agora eu sei como é”. - pensei - o que sentimos quando a morte nos
pega pelas mãos.
Quando
cheguei à sala de interrogatório do presídio, o diretor perguntou a um homem
desconhecido: “é esse o homem que procura?” o outro se resumiu em apenas acenar
positivamente com a cabeça. O diretor me levantou pelo braço e me levou a um
canto de parede, perguntou em inglês se eu conhecia alguém chamado Vitoria. Eu
respondi que tinha uma avó com esse nome, mas que ela já havia falecido há
vários anos, ele levantou uma sobrancelha curiosa, e procurou-me tranquilizar.
Disse que também não estava entendendo muita coisa, mas que, eu logo saberia. Quando
eu já não sabia mais o que pensar um guarda entrou, ele entregou uma pasta de
papel pardo ao homem desconhecido. O dito homem desconhecido se apresentou a
mim como Jeremy Cornnel, o promotor do condado. Vi no seu jeito de falar que
algo estava errado, fora de lugar. Ele me olhou com um olhar misto de desconfiança
e duvida. Abriu a pasta em minha frente na mesa:
-
Você conhece alguém chamado Jonh Alvin Ferbenks, encanador, homem branco de
trinta e oito anos, morador da cidade de New Jersey?
- Não senhor – disse meio confuso.
Ele
me olhou atentamente - há exatamente uma semana esse homem confessou o
assassinato que você é acusado. A pessoa que foi assassinada lhe devia dinheiro,
e parece que esse tal Jonh, era uma pessoa impaciente, acontece, para nossa
vergonha e pesar, que você entrou nessa, porque conhecia a vitima também, nada
tem a ver por você ser um imigrante ilegal, sem documentos, sem passado nesse
país, apenas que as provas levavam a sua culpabilidade, e como aquele assassino
sabia dessa sua condição, pensou que tinha encontrado um “pato” para
incriminar.
Ele
parou por um momento em hesitação. Depois continuou:
-
É agora que as coisas vão parecer estranhas, não me levem a mal. Um dia ele se
apresentou bastante assustado. Dizia coisas sem nexo. Não quis explicar as
reais razões de ele ter se entregado. Disse apenas que coisas estranhas estavam
acontecendo com ele. Então ele como já não agüentava mais, segundo suas palavras,
decidiu-se entregar.
Eu
estava aturdido. Não conseguia compreender o que realmente estava acontecendo.
Onde estava a minha advogada? Não era para ela está aqui, agora? Eu tinha
certeza que eles estavam fazendo algum jogo com a minha mente. Eu ainda não
sabia a razão. Mas era um jogo desleal e sádico. Talvez fosse alguma técnica de
Guantánamo, para confundir as nossas cabeças.
O
promotor com olhar cansado apertou o nariz:
- Eu sei que isso não cheira bem. É o caso
mais estranho que já tratei, mas eu sou um homem pratico, e a verdade é que
alguém cometeu o crime, e não foi você. Ele confessou e apresentou as provas
que nós precisávamos para incriminá-lo, então se prepare, que dentro em breve
você será deportado, depois eu voltarei, falta esclarecer alguns pontos, mas
basicamente é isso.
Quando
ele se levantou e já ia saindo da sala, pareceu se lembrar de alguma coisa e
meteu a mão no bolso do paletó. De dentro tirou algo e colocou em cima da mesa:
-
Eu sei que é contra as regras do sistema, mas diante desse caso meio nebuloso, decidi
ser mais transigente. O tal Jonh pediu para entregar-lhe isso, você pode
aceitar ou não, ele disse que você saberia o que significa.
O
promotor saiu da sala e o diretor foi atrás dele. Em cima da mesa estava um
objeto. Um broche de prata com turmalinas em forma de peixe. Eu não podia acreditar. Mas era
exatamente igual ao broche de minha avó Vitoria. O que foi enterrado com ela. As
coisas aconteceram aos borbotões. Não dando chance alguma para pensamentos mais
profundos. Simplesmente aconteceram e não me perguntem por quê. Eu ignoro as
razões.
Sábado,
vinte e oito de agosto. Foi um mistério. Eu já me considerava morto. Já tinha
abandonado as esperanças. Mas então surge isso. Mas graças a minha avó, nessa
inexplicável e sobrenatural intervenção, tudo saiu bem. Depois disso tento
entender o que realmente aconteceu, mas não encontro uma razão lógica. Eu só
posso então agradecer a ela. Lembro-me quando deixei a prisão, aquela
superestrutura negra, os holofotes, as cercas altas de arame eletrificado, e o
meu amigo Vermont. Depois que voltei para casa, não consegui entrar em contato
para saber o destino dele. Simplesmente não consegui por pura covardia. Nesse
caso inexplicável, eu penso até agora, e estou cada vez mais convencido, dado
esse acontecimento estranho, de que não há tipo de morte que possa crepuscular
todas as coisas importantes de nossas vidas.