quarta-feira, 29 de agosto de 2012


 
 
 
O Broche de Turmalinas  

 

É quinta feira, dia quinze de julho, e dentre em pouco serei morto. O tempo tomará o meu corpo e o encherá de flores brancas. Aquelas de enterro. Estou em um local que chamam de “germinário”. Pergunto a outro preso o porquê de chamarem assim esse lugar. Eu e alguns outros apenas a chamamos de corredor da morte, mas estranhamente deram um tom aprazível para um lugar tão trágico. Michele, minha advogada procurou me consolar, acredito nela, ela até chorou, ela fez o que pode. Ela me disse que aqui, não podemos esperar muita coisa das autoridades. A palavra dos especialistas é a lei e eles constataram (não sei por que passe de mágica) que eu era culpado do crime. Os jurados decidiram por unanimidade a partir dali ela não conseguiu vencer na apelação do processo, estava exausta e frustrada, queria ter feito mais. Vim para esse país à procura de que? É necessária uma boa dose de loucura para se atirar assim, em uma viagem ilusória, em promessas de coiotes, de imagens de revistas e shows de televisão: aquelas figuras, de famílias sorridentes, ruas limpas, carrão na porta. Como eu pude acreditar? Ainda mais porque tenho alguma instrução, sou um professor de historia desempregado, o imbecil que saiu de Tijuana, ou melhor, dizendo de Mossoró no Brasil e atravessou a fronteira do México. Sobrevivi à travessia. Mas, acho que não vou sobreviver ao sistema. Porque na realidade eu sou o invasor, aquele que veio à casa de alguém sem ser convidado, um penetra na festa, mesmo injustiçado, hoje sei que é errado entrar assim em um país, clandestinamente, como um ladrão. Acham que eu sou culpado de assassinato. Mas e daí, se não acreditam que sou inocente? Dentre em pouco o tempo resolverá todos esses problemas. E eu serei morto.

Sexta feira, Jack o guarda, me trouxe mais uma carta de Vermont, um amigo que conheci na prisão, ele parece ser uma boa pessoa. A sua apelação também falhou. Ele acredita que tem mais um mês pela frente, logo fará companhia a mim, iremos para aquele lugar desconhecido, dentro de caixões. Permitindo-me um tanto de poesia: irei onde germina as almas cansadas. Inocentes ou não. Nesse momento, após ler a carta, sinto apenas o medo, minhas mãos tremem de ansiedade e espanto, posso ver a solidão na vastidão desse corredor da morte. É nesse momento, em que estamos sozinhos, longe daqueles que amamos que começamos a dar valor a pequenas coisas, que antes pensávamos serem banais. Por exemplo: quando eu via as pessoas olhando o céu a noite, achava a maior idiotice. Porque perder tempo olhando estrelas, se as coisas acontecem toda à hora ao nosso redor? Achava muito piegas e uma perda de tempo. Agora sei o preço que tem uma estrela que brilha no firmamento, e como é importante o simples fato de vê-la brilhar. Às vezes me pergunto como seria a face de Deus, se para nós só existe o gelo do espaço. É assim que se oculta o mistério? No gelo do espaço? Eu acho melhor deixar, por hora, falar o mistério apenas na imaginação, porque não há pensamento ou ansiedade que possa crepuscular essa idéia, sobre a inevitabilidade da minha morte.

 

Foi em meados de julho, que aconteceu “aquilo”. Eu estava deitado, lendo uma revista playboy que trazia uma reportagem sobre a cultura brasileira. A minha memória viajava nas palavras, e tentava esquecer toda essas coisas terríveis que vivia. Um guarda apareceu e disse que me preparasse que iria ver o diretor. Fiquei extático de pavor, pensei que eles tivessem antecipado a minha execução, mas a minha advogada não me alertou sobre esse fato. Mil coisas passavam por minha cabeça. Quando vieram me buscar, mal consegui sair da cela tal o pavor e a tensão, “Agora eu sei como é”. - pensei - o que sentimos quando a morte nos pega pelas mãos.

Quando cheguei à sala de interrogatório do presídio, o diretor perguntou a um homem desconhecido: “é esse o homem que procura?” o outro se resumiu em apenas acenar positivamente com a cabeça. O diretor me levantou pelo braço e me levou a um canto de parede, perguntou em inglês se eu conhecia alguém chamado Vitoria. Eu respondi que tinha uma avó com esse nome, mas que ela já havia falecido há vários anos, ele levantou uma sobrancelha curiosa, e procurou-me tranquilizar. Disse que também não estava entendendo muita coisa, mas que, eu logo saberia. Quando eu já não sabia mais o que pensar um guarda entrou, ele entregou uma pasta de papel pardo ao homem desconhecido. O dito homem desconhecido se apresentou a mim como Jeremy Cornnel, o promotor do condado. Vi no seu jeito de falar que algo estava errado, fora de lugar. Ele me olhou com um olhar misto de desconfiança e duvida. Abriu a pasta em minha frente na mesa:

- Você conhece alguém chamado Jonh Alvin Ferbenks, encanador, homem branco de trinta e oito anos, morador da cidade de New Jersey?

 - Não senhor – disse meio confuso.

Ele me olhou atentamente - há exatamente uma semana esse homem confessou o assassinato que você é acusado. A pessoa que foi assassinada lhe devia dinheiro, e parece que esse tal Jonh, era uma pessoa impaciente, acontece, para nossa vergonha e pesar, que você entrou nessa, porque conhecia a vitima também, nada tem a ver por você ser um imigrante ilegal, sem documentos, sem passado nesse país, apenas que as provas levavam a sua culpabilidade, e como aquele assassino sabia dessa sua condição, pensou que tinha encontrado um “pato” para incriminar.

Ele parou por um momento em hesitação. Depois continuou:

- É agora que as coisas vão parecer estranhas, não me levem a mal. Um dia ele se apresentou bastante assustado. Dizia coisas sem nexo. Não quis explicar as reais razões de ele ter se entregado. Disse apenas que coisas estranhas estavam acontecendo com ele. Então ele como já não agüentava mais, segundo suas palavras, decidiu-se entregar.

Eu estava aturdido. Não conseguia compreender o que realmente estava acontecendo. Onde estava a minha advogada? Não era para ela está aqui, agora? Eu tinha certeza que eles estavam fazendo algum jogo com a minha mente. Eu ainda não sabia a razão. Mas era um jogo desleal e sádico. Talvez fosse alguma técnica de Guantánamo, para confundir as nossas cabeças.

O promotor com olhar cansado apertou o nariz:

 - Eu sei que isso não cheira bem. É o caso mais estranho que já tratei, mas eu sou um homem pratico, e a verdade é que alguém cometeu o crime, e não foi você. Ele confessou e apresentou as provas que nós precisávamos para incriminá-lo, então se prepare, que dentro em breve você será deportado, depois eu voltarei, falta esclarecer alguns pontos, mas basicamente é isso.

Quando ele se levantou e já ia saindo da sala, pareceu se lembrar de alguma coisa e meteu a mão no bolso do paletó. De dentro tirou algo e colocou em cima da mesa:

- Eu sei que é contra as regras do sistema, mas diante desse caso meio nebuloso, decidi ser mais transigente. O tal Jonh pediu para entregar-lhe isso, você pode aceitar ou não, ele disse que você saberia o que significa.

O promotor saiu da sala e o diretor foi atrás dele. Em cima da mesa estava um objeto. Um broche de prata com turmalinas em forma de peixe. Eu não podia acreditar. Mas era exatamente igual ao broche de minha avó Vitoria. O que foi enterrado com ela. As coisas aconteceram aos borbotões. Não dando chance alguma para pensamentos mais profundos. Simplesmente aconteceram e não me perguntem por quê. Eu ignoro as razões.

 

Sábado, vinte e oito de agosto. Foi um mistério. Eu já me considerava morto. Já tinha abandonado as esperanças. Mas então surge isso. Mas graças a minha avó, nessa inexplicável e sobrenatural intervenção, tudo saiu bem. Depois disso tento entender o que realmente aconteceu, mas não encontro uma razão lógica. Eu só posso então agradecer a ela. Lembro-me quando deixei a prisão, aquela superestrutura negra, os holofotes, as cercas altas de arame eletrificado, e o meu amigo Vermont. Depois que voltei para casa, não consegui entrar em contato para saber o destino dele. Simplesmente não consegui por pura covardia. Nesse caso inexplicável, eu penso até agora, e estou cada vez mais convencido, dado esse acontecimento estranho, de que não há tipo de morte que possa crepuscular todas as coisas importantes de nossas vidas.

 

 
 
 
A Vingança da Lua na Casa do Sol

 
“Até hoje me pergunto. Porque não me esperou? Porque fez aquilo? Se ela tinha a chave e a fechadura da noite, um pavilhão movimentado, cantante e extenuante? Lembro-a em uma noite de luar propicio para o sono, onde o seu corpo branco repousava. Seus seios luminosos em uma estrada de malicia e elevada. Essa imagem ficará na minha memória para sempre”.

Deixem-me contar a minha historia então. Conheci a mulher de minha vida no colégio, no segundo grau de uma escola tradicional. Ela na verdade nunca deu muita bola, mas eu me apaixonei no primeiro olhar. Na primeira palavra que saiu de sua boca. Na primeira tapa na cara que eu levei dela durante uma festa na casa de uma conhecida. Eu sei, podem dizer que na realidade eu estava interessado na fortuna da família de Simone Prado, mas o que eles sabem da verdade? Só vêem o que querem ver em suas visões mesquinhas. As mesmas coisas dizem sobre a aparência de minha noiva. Como podem ser tão cegos? Feia? Essa condição cabe varias interpretações! Lembro-me da peça o Misantropo de Molière em que ele fala da retórica do amor. Das imperfeições perfeitas ou das perfeitas imperfeições, não sei exatamente, mas ali ele diz que a gorda tem porte cheio de majestade e a altiva tem a alma digna de uma coroa. É essa a definição de minha noiva. Ela tem sua própria beleza escondida. Pois quem é mais sábio? A arte é a expressão da sabedoria, da visão profunda. Quem pode dizer que uma pessoa é só isso ou aquilo? As pessoas me perguntam: “Geraldo, será que você não está se excedendo? O que você viu nela?” Eu só respondo que elas é que estão se excedendo. Eu é que sei o que sinto. O que é verdadeiramente importante para mim.

Eu sou o Marquinho. O melhor amigo de Geraldo, aquele deslumbrado! Ele coitado, sempre foi muito indulgente, míope e prestativo. Basta dizer que se existe um grande ingênuo no mundo, este é o meu amigo! Quando ele disse que estava namorando a Simone, pensei que ele tinha caído de cabeça nas pedras do parque. Vocês já viram um jacaré amarado na cintura? É ela! Isso com maquiagem! A propósito, um dia eu estava andando no centro da cidade, e ela vem saindo de uma loja chique, daquelas que uma bolsa pode custar cinco mil reais, o vestido dela dava para fazer uma cortina de janela. Mas o engraçado em toda a cena dessa tarde foi o homem da carrocinha de cachorros, que a olhava desconfiado, de rabo de olho, sem saber se a cumprimentava ou se a prendia e levava embora! Depois ele veio me perguntar se “aquilo” era mesmo uma pessoa! Tá bem. Vocês acham que eu estou exagerando. Eu já estou acostumado. Mas para prevenir e defender o meu ponto de vista, eu ando com essa foto aqui ô, os dois em uma reunião do Rotary Clube. Imaginem que um senhor achou que era uma foto de um rapaz sendo atacada por um cão da raça Pitbull! Exagero? Essa foto foi parar na internet, e garanto que não fui eu. Só sei que está fazendo o maior sucesso. Mas continuo a levar essa foto no bolso. Por quê? É simples, eu não quero ser acusado de preconceito, de ser um cara exagerado em minhas opiniões. Basta mostrar a foto!

Eu? Meu nome é Tânia. É eu quase namorei o Geraldo. Ele até que é bonitinho. Mas é muito bobo, pegajoso. Uma vez ele tentou me beijar durante uma palestra sobre homicídios premeditados na faculdade. Imagine só, estavam passando cenas de vitimas das mais horrendas mutilações. E o cara tinha estomago para beijar? Que nojo! Fora isso ele é um cara legal. Meio abestalhado, mas legal. A noiva dele? É uma pessoa difícil. Como? É extremamente arrogante, olha todos de cima para baixo, como se ela estivesse em cima de um pedestal. E daí que é rica? Ela deve ter tantos complexos que talvez esse seja um jeito de compensar. O que? Eu acho que vocês nunca a viram pessoalmente. Vão ver. Ai sim poderão dizer, se eu estou falando alguma bobagem!

   A festa de casamento tinha sido marcada para acontecer na cidade natal de Simone. O padre estava com um mau pressentimento. Onde já se viu marcar uma cerimônia de núpcias em um dia de eclipse total do sol. Quem teve essa idéia de jerico afinal? Na subida da rua principal as casas eram um recôncavo de siluetas. O declive era banhado por lunetas a procura do eclipse. Naquele final de dia, tudo que Geraldo poderia enxergar, a sua futura decepção diriam, e embora ele não desconfiasse de nada, eram janelas preocupadas de dor, de uma separação precoce. Ali, nas casas enfileiradas, os parentes da poderosa Simone de suas janelas abertas, debruçados, cogitavam se haveria ou não a festa. Todo casamento que se prestasse tinha que ter uma festa. Mesmo em um dia como aquele. A avó da noiva disse que se acontecesse esse casamento naquele dia, todos estariam amaldiçoados. Imagine, essa velha é cheia de manias mesmo.

 

- O Geraldo.

- Fala Marquinho.

- Você tem certeza do que tá fazendo? Quero dizer, será que você quer mesmo se casar?

- Eu estou aqui, não estou?

- Mas será que você está bem? Quero dizer, se alguém realmente tá certo dessas coisas? É um negocio muito serio essa de casamento.

- Eu sei que é serio. Hoje é o dia mais feliz de minha vida!

- Enlouqueceu.

A cidade do interior onde a festa de casamento foi organizada ficava a poucos quilômetros da capital. Cidade pequena de oito mil habitantes, onde o sobrenome Prado era motivo de orgulho para todos, afinal, foram eles que fundaram a cidade. Praticamente eram donos dela. O casamento por coincidência iria acontecer no dia de um eclipse total do sol. Em um espetáculo infrequente da natureza, o astro rei seria engolido pela dama da noite. Diz o ditado popular que casamento em dia de eclipse é morte na certa ou azar. Que a pessoa que desafia essa maldição, carregará a desgraça para o resto da vida.

- Tá vendo Geraldo. É melhor desistir cara. Ainda dá tempo!

- Mas como você é inconveniente. Não está percebendo que os seus exageros são impróprios? Aonde já se viu!

No horário marcado, na fazenda dos Prados, tudo estava pronto, o grande palanque do show musical com uma dupla sertaneja famosa. As mil mesas. O bufê gigantesco. Os fogos de artifício para a noite. A presença de mais de mil e quinhentos convidados, a nata da sociedade. O noivo nervoso e os pais impacientes. Ela se demorava.  O pessoal dançava animado. Mas as coisas começavam a acontecer. Um tio de Simone caiu da cadeira bêbado e quebrou o nariz. A comida e a bebida percorriam as mesas como se os pais da noiva fossem irresponsáveis com o colesterol dos convidados. Um gordo teve uma séria indigestão e foi levado as presas por uma ambulância. Chegou a noticia que um primo do padre tinha sido preso por direção perigosa. Uma convidada teve um surto psicótico e mordeu a orelha de outra senhora, desafeto de muitos anos.  E nada de Simone chegar. Demorou muito. E então tudo ficou escuro. Mesmo com a banda que tocava, poderíamos sentir um estranho silêncio por trás dos sons do ambiente. Como mágica todos silenciaram, até a musica. Todos olhavam para o alto, como se estivessem hipnotizados, mesmerizados. Por poucos minutos o mundo parecia ter parado. E então subitamente, a luz do sol começou a voltar enquanto a lua precipitava-se no plano invisível do céu. E apesar de todo esse espetáculo, Geraldo não conseguia se esquecer de sua noiva. Enfim onde estava ela? Simone não apareceu. E a noite fechou a festa.

Em meio aos choros das mães e constrangimentos dos pais, os garçons e empregados recolhiam as mesas. Geraldo estava cabisbaixo e com os olhos injetados de cólera. A sua frente ainda se encontrava a prima de Simone. Em suas mãos uma carta que dizia de maneira sumaria e sintética, as razões da ausência da noiva e a fama destruidora que tinha o dia de eclipse.

 

Caro Geraldo.

 

Como pode notar, estou desistindo do casamento. Quero que saiba da imensa dor e constrangimento, que sinto nesse momento tão importante. Se isso aconteceu, não foi por culpa sua, a única explicação razoável, é a de que apesar de seu carinho de sua atenção extremada, eu não pude sentir o amor que lhe é merecido. Igualmente, para maiores esclarecimentos, é de supro reconhecimento, a aclaração de que amo outra pessoa. Mais precisamente uma pessoa bem próxima de ti. Mais precisamente, a pessoa de Marcos Teixeira. Sim o seu amigo Marquinho é aquele a que dedico um amor verdadeiro. E já a bom tempo, desde que estudava o segundo grau. Sinto verdadeiramente que as coisas tenham acontecido nesses termos, mas espero que compreenda, e desejo a ti toda a felicidade.

Da sua Simone Prado.

 

 

Na casa grande da fazenda, no quarto que tinha sido preparado para eles, Geraldo cogitava, e apesar da dor, seus pensamentos podiam se dar o luxo da poesia: “porque Simone saiu secreta, envolvida nas carcaças de nossas lembranças? Olhos brilhantes nas trevas, onde me aprisionastes? Estava preso a ela por um helo de amor. Ela se foi, deixando a sua presença”.

Mas, deveras, a sua presença ainda permanecia naquele quarto. Invisível e irresistível. Essa presença invisível, era a força que lhe prendia. Apesar de toda a ironia, da miopia, e de todo o mistério do eclipse.