sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Conto Vinte e Três. Um Pequeno Conto Nordestino.









O Arcanjo da Chuva

O arcanjo calmo. É assim que era conhecido. De um azul brando. Virginalmente flutuando. Ele era um arcanjo que virou gente. Não foi por ordem superior não. Foi porque ele quis! Era especialista em chuvas e congêneres. Viu que a seca estava braba, e decidiu vir a terra para tentar ajudar. Sempre quis ajudar. E como as suas intenções eram boas, Deus deixou. São Pedro assinou embaixo.  Então Odílio foi. E fez maravilhas.
Isso foi quando ele era jovem. Como ele aceitou ser gente, começou a envelhecer como todo mundo. Ele agora, já velho, em uma feira livre de uma cidade do interior do Rio Grande do Norte, lembrava de suas antigas façanhas. Naquele dia de inverno o tempo estava ingrato. Não havia nenhum sinal de chuva. As margens de um rio quase seco, a fama de Odílio a muito já havia declinado. Ele no passado era considerado o maior “fazedor de chuva” do nordeste. Ainda se lembrava de momentos sublimes. Quando no Piauí conseguira debelar uma seca de dois anos inteiros! E houve um momento no agreste paraibano que conseguiu molhar quarenta quilômetros quadrados com uma nuvenzinha só. Inteiro mar sobre mudos céus. Era assim que via as nuvens. Podia sentir o cheiro delas. Algumas tinham cheiro de frutas. Outras a recifes e estrelas do mar. Podia jurar que uma vez havia sentido em uma cumulo limbo o aroma de enseadas africanas. Por ele ser um membro das hostes celestiais, ele sentia pena da dor do sertanejo. O protetor. O chamavam assim. Uma vez no interior da Bahia após uma bem sucedida prece, quando fez chover em uma terra que a muito não se via água, um menino apareceu com um peixe na mão:
-de onde é esse peixe, menino? -perguntou Odílio desconfiado.
-não sei não. Só sei que ele caiu do céu junto com a chuva, e caiu um montão de peixe. - respondeu o menino satisfeito.
“Isso vai dar confusão” ponderou. Realmente com o temporal, veio uma chuva de peixes que só faltou soterrar a pequena cidade. No outro dia estavam chamando Odílio de santo. Umas velhinhas carolas da cidadezinha organizaram uma procissão ate onde ele estava. Era um mar de velas e cantoria a noite toda. Essa foi de amargar! Ele odiava com todas as suas forças se chamado de santo! Será que essa gente não ia aprender nunca? Ele era um arcanjo! Das hostes divinas entenderam? Mas que saco! Teve que ir embora escondido na boleia de um caminhão. Ele lembrou-se desse caso, e não pode esconder um sorriso. A sorte e a injustiça. Dessa se lembrava também. Uma vez um fazendeiro contratou um pistoleiro para eliminar Odílio. Ele tinha proporcionado o inverno mais farto dos últimos tempos na região. Então por que tudo aquilo, simplesmente não conseguia entender o tamanho do ódio desse fazendeiro? Foi então que soube que o dito cujo havia “encomendado o serviço”, porque Odílio sem o querer o havia arruinado. O esperto vivia da desgraça do povo. Vendia sua criação e seus cereais por um preço exorbitante, indecente até. E com a vinda da chuva todo o seu esquema foi por água abaixo, literalmente. Vamos entender a natureza humana! Embora o pistoleiro tenha se esmerado na pontaria, as balas ricocheteavam no corpo do arcanjo e não causavam nem cócegas. A droga toda foi que esse imprudente havia estragado uma camisa novinha de Odílio. Depois o pistoleiro pediu até uma benção, uma reconsideração de seus atos. Mas quem abençoa é santo. Ele não era santo. Era um arcanjo.  
Essas lembranças queimavam como archote. Que ingratidão dos homens! Na velhice ele aprendeu a se virar. Estava aposentado pelo Funrural. Recebia todo mês o bendito salário mínimo. Nunca tinha bebido álcool. E nunca gostou do jogo. Mulher prá ele só servia para lavar, passar e cozinhar. Televisão então! Achava estranhas essas imagens que falavam. Achava que só diziam lorota. Imagine o homem ir à lua! Como é que podia isso, se lá na lua morava São Jorge? Ah ele não ia gostar disso, não. Imagine tanta mentira dentro de uma caixinha daquelas! O homem ir à lua! Então a velhice de Odílio era uma chatice. Um pé no saco.
Nesse dia, quando se lembrava de todas essas coisas, ele estava na feira da pequena cidade de Ceara - Mirim, perto de Natal. Um saco nas costas pela metade de coisas que tinha comprado. Estava pesquisando o preço da macaxeira, quando alguém deu três batidas com o dedo nas suas costas. Virou deparou-se com um velho baixinho de chapéu de vaqueiro e bigodão. O baixinho o olhou fixamente e perguntou:
-o senhor é o fazedor de chuva? Aquele que chamam de arcanjo da chuva?
-eu era agora eu to aposentado.
-mas quer dizer que não sabe mais fazer chover?
-eu sou um arcanjo. Eu faço água e empacoto!
-mas tá aposentado. Ou seja, já não serve prá nada, nadinha, nadinha?
-e quem disse isso seu bosta! Quem é você afinal? Um papa defunto esperando eu morrer é?
-Mas que nada. Eu sou um ex-fazendeiro. Hoje vivo à custa dos meus filhos. Sim, porque deixei todos muito bem de vida! E eles me devem. Entendeu?
-e onde eu entro nessa historia? Ei você, essa macaxeira é minha, eu vi primeiro! Ta vendo. Você já me deu prejuízo.
-mas nada igual ao prejuízo que você me deu há tempos atrás. Quando você fez chover em certo lugar. Quando botou um homem meu prá correr. Mas como eu tive ódio de você “seu cabra”!
-eu to lembrado da estória. Do pistoleiro e tudo. Quer dizer que foi você. E você quer se vingar agora. Depois de todos esses anos? Então pode começar, porque eu não ligo mais prá nada! Cansei da vida, ta bem? Pode mandar bala!
-mas quem disse que eu vim aqui prá isso? Tá delirando? E afinal não ia adiantar atirar, você não morre de bala. Morte matada passa longe de você! Na verdade eu vim te contratar! Imagine você que o prefeito de Quixadá ofereceu uma grana boa se eu levasse você até a festa do padroeiro desse ano. Que tal? Sócios?
-mas eu sou um arcanjo seu bosta! Como é que eu vou passar por um papelão desses? Não dá!
-mas quem vai tocar na festa é a Ivete Sangalo!
-não dá!
-dois mil e quinhentos reais.
-só pra mim?
-é.
-é que eu to mesmo precisado. Esse negócio, de chuva tá meio obsoleto sabe? Tá bom, eu vou.
-mas só tem uma condição.
-E qual é?
- você vai ter que ir vestido de santo.