sexta-feira, 31 de agosto de 2012


 
O Chafariz das Almas

 

Elias Ribaldo agora sóbrio se via em um aquário silencioso, em sua cabeça, é lógico. Aquela fonte era a certa. A que foi indicada como a que lhe daria a esperança de transformação. Faria tudo certo. Cumpriria as suas promessas. Tentaria, ou melhor, faria o ritual, que o homem havia ensinado. Ali começaria a sua árdua viagem dentro de si mesmo. Ele se lembrava do curandeiro que lhe aconselhara a procurar uma fonte na cidade que tinha poderes curativos e mágicos. Foi depois de ter tentado tudo. Os alcoólicos anônimos as praticas da medicina oriental, a fito terapia, até um terreiro de umbanda. Quando já estava quase perdendo as esperanças, conheceu Umbu Cajá, um pajé do alto Solimões. De cocar e tudo. Mas esse índio tinha um estranho sotaque, que ele não conseguia atinar de onde seria. O pajé havia lhe dito que apenas uma água pura, proveniente de uma fonte antiga, de leito de um determinado mineral, teria a força para curá-lo, fazendo com que o seu sangue reagisse à mudança bioquímica causada pela bebida. Mas ele disse também, que essa mudança seria espiritual. Dentro do entendimento que Elias tinha com relação a sua vida. Seria rápido. Com uma resposta simples e direta.

Com essas idéias na cabeça Elias saiu à procura deste misterioso chafariz. Foi informado que esse monumento tinha sido construído na Europa no inicio do século dezenove. Que foi transferido para cá a pedido da família imperial. E foi colocado no centro da cidade. Que anteriormente, até o inicio do século vinte ele estava incólume, com seus mil e quinhentos quilos de bronze. Com um desenho harmônico de dois meninos nus segurando uma jarra, de onde jorrava uma água cristalina. Com o passar dos anos, as reformas continuas, o replanejamento urbano, a obra do tempo, a ação de ladrões, haviam transformado essa jóia da técnica de construção de chafarizes, em uma acanhada torneira. Um lugar público onde se lavava roupas. O único sinal que uma vez existiu algo assim, indicando o lugar exato do monumento, era uma marca gravada no cimento, era o de um rouxinol segurando no bico um galho de louro e uma letra “b”, na folha principal. Pelo menos, era isso que Umbu Cajá havia lhe dito. Mas pensando bem, como ele havia descoberto tudo isso? Com certeza fazia parte do repertorio de informações dos pajés do alto Solimões. Ou ele teria conseguido essa informação por meios sobrenaturais.      

 Depois de muita procura e chateações, Elias chegara ao chafariz. Ali estava à pequena torneira, com o desenho que ele, o pajé, havia indicado. Relembrou a estória que o curandeiro lhe contou sobre as propriedades da água desse chafariz. Mas como? Ali só via uma torneira enferrujada que dava a uma banheira e o chão verde de musgos e sujeira. Em sua visão idílica, havia imaginado outra coisa. Algo mais grandioso. Mas o que Umbu havia dito mesmo? Sim, “abra a torneira”.

Quando abiu a torneira, ouviu um barulho de algo querendo escorrer. O barulho persistia, mas não caiu nem uma gota de água. Ao invés do liquido incolor, Elias começou a sentir uma sensação na barriga. Logo se transformou em uma sensação suave, mas indescritível. E isso aumentou até chegar a sua mente. “Onde tombou uma alma jovem”. Ele sentia isso, pressentia os vultos. E começou a ver imagens, fragrâncias e pensamentos alheios. O brilho das flores. O jorro da água límpida como um jarro de cristal em sua mente. Existia magia ali. Algo sem resposta pragmática. A alma do mundo tinha ali o seu pequeno significado. Elias guardava os seus excessos viciosos com zelo, agora era momento de se livrar deles. Tencionava beber da água, e viajar no vinco do mundo, em rebanhos de luz, como haviam descrito para ele. Essas palavras misteriosas para ele faziam sentido. Queria ir, aonde almas vacantes iam ao léu. Quando iam ao encontro de suas respostas.

O pajé havia dito também, para que ele fosse curado era necessário cumprir três desafios que lhe possibilitaria a liberdade: ter a capacidade de sentir vergonha; ter o direito de chorar; e retribuir um favor. Para qualquer pessoa isso seria relativamente fácil. Mas não para ele. Como iria fazer isso? Não sabia por onde começar. Era verdade que por mais que tentasse jamais havia sentido vergonha ou remorso do que fazia nessa sua vida tão cheia de percalços. Considerava-se uma pessoa boa normal, mas era orgulhoso como ninguém. E também, havia levado sua esposa e seus filhos quase a miséria total, por causa da bebida. Chorar? Nunca havia lembrado desse fato. Sentia-se incapaz de verter uma lagrima que fosse mesmo aos piores momentos que sofrera isso não tinha acontecido. E também, que favor era esse que teria que retribuir? Não conseguia imaginar o que seria.

 

Com as faculdades proporcionadas pela fonte mágica, súbito relembra a sua vida da prosperidade à miséria causada pelo alcoolismo (onde tombou uma alma jovem). Como fizera sofre a mulher que tanto amava. De como envergonhou os filhos diante da sociedade e da historia da família. Mas que sina. Como se sentia mal, o pior inseto, diante da constatação. De repente, uma imagem nítida lhe apareceu diante de seus olhos interiores. Veio não se sabe de onde, uma lembrança de um dia passado, clara como uma curta metragem de cinema. Foi um dia após uma recepção regada a vinho e champanhe, tinha feito o maior escarcéu, tinha derrubado uma mesa, sujado o vestido de uma convidada com vinho. Até que muito delicadamente, o retiraram da festa. Depois disso nunca tinha se lembrado do que havia acontecido. Apenas que havia acordado no hospital seminu e machucado. A enfermeira havia lhe dito que ele tinha sido assaltado e deixado a própria sorte no meio da rua. E então a vivida imagem lhe deu as respostas que procurava:

“Começou a lembrar que, depois que saiu daquela festa, bêbado e aborrecido, foi a um bar e se encontrou com dois amigos. Ou que pensava serem amigos de verdade. Em uma visão ampliada, conseguiu observar quando o seu amigo Marouço lhe colocara um comprimido no copo de conhaque. Os viu levarem seu corpo desacordado a uma viela escura. Lá sem um mínimo pudor, a menor decência, o estupraram, roubaram seu dinheiro e parte de suas roupas só para completarem “a brincadeira” que haviam proposto. Riam e debochavam. Com suas almas negras, atiçadas por forças escuras e secretas. Depois de estarem satisfeitos, foram embora abraçados e rindo muito. Foram beber a custa de Elias. Perto dali outro amigo de Elias observava tudo. Bartolomeu. Ele presenciou escondido,toda a barbárie cometida contra o pobre coitado. E pensar que Elias tinha humilhado Bartolomeu por ele ser pobre, humilde. Em um dia de bebedeira havia agredido o amigo por nada. Por nada. As coisas acontecem de maneira estranha. Bartolomeu pegou o amigo, e o levou ao hospital.”

O choque do reconhecimento. O choque foi vergonhoso e cruel. De sua condição de alcoólico inveterado. Então pela primeira vez na sua vida, havia sentido vergonha. Mas foi um sentimento atroz. O seu peito parecia que ia explodir. Todo o seu ser, tudo que tinha sido, e o que seria, queria perecer. Apagar e desaparecer do mapa do mundo. Diante de toda essa angustia, de tudo que viu e sentiu, não aguentou. E então pela primeira vez em sua vida chorou. Em um pranto copioso e profundo.

Quando já não havia lagrimas para chorar, teve uma visão do espírito do chafariz. Uma forma de luz, sorridente. Essa luz só ficou ali. Acalentando. Abraçando. Curando. E Elias se sentiu melhor. Mais seguro, e compreendeu o que significava aquela magia. O poder por trás de tudo que é bom.

Saiu dali e foi procurar Bartolomeu. Ao chegar à casa do antigo amigo encontraram tudo fechado, as luzes apagadas. Procurou saber sobre ele. E um vizinho, um moreno de barba branca, lhe disse que Bartolomeu estava hospitalizado. Sim, sabia o nome do hospital e daria a ele. Elias em desespero pegou a primeira condução que apareceu. Ao chegar ao enorme prédio branco, procurou a atendente e foi encaminhado ao quarto certo, descobriu o amigo sedado. “Não tinham o dinheiro para o tratamento” lamenta a esposa. Elias sorriu, “agora tem” disse. Ainda tinha algumas economias, mais que o suficiente. E em uma tarde ele sem o sentir cumpriu as três promessas, pedido pelo pajé Umbu Cajá.

No finalzinho da tarde, Elias voltou ao “chafariz”. Ele se sentia renovado. Sentou perto da torneira para meditar. Que interessante, ele não sentia vontade de beber. Permaneceu ali por algum tempo. Olhos fechados. Só em silêncio. Sentindo algo novo. O corpo renovado. O mesmo corpo, mas novo, na vontade e na esperança.

Quando a lua já começa a sair, e quando o barulho dos carros vai diminuindo, ele sente uma pessoa se aproximar. Para sua total surpresa é sua ex-esposa. Aquela mulher que ainda ama. Ela também está surpresa, mas confessa que ela sempre vai nessa bica, que alguém disse para ela que era uma fonte mágica. Para fazer uma promessa para ele, Elias, ficar curado. Nessa prova de amor. Nessa “coincidência” fantástica eles se abraçam. Quem disse foi um pajé? Não. Ela disse que tinha sido um padre junto com um pastor protestante. Que um dia apareceram e lhe ensinaram um meio de livrar o seu marido do vicio de beber. Disseram também, que Deus tinha estranhos métodos e caminhos para resolver os problemas humanos. Mas que curioso. Elias explicou tudo à mulher que amava. E então os dois saíram juntos de mãos dadas. Espantados com a força que existe por trás do amor. Agora sabia como. Se soubesse como era simples. O seu espírito levava o seu corpo renovado e sua esposa, já na mesma flor de sonho. Vendendo retidão.

 
 
Negocio em Família

 

-Onde você estava meu filho? A essas horas da noite?

-Eu to legal mãe.

-Tá parecendo meio alterado, você bebeu? Ou experimentou outra coisa? Olha que eu não permito que você aja assim! Eu não permito!

-O que você não permite mãe? Que eu seja eu mesmo. Que não tenha falhas? Não é nada disso que você está pensando!

-Como não? Seus olhos estão vermelhos. A sua voz está diferente, arrastada. Está todo sujo meu filho!

-E a senhora está mais suja do que eu. Eu vi.

-O que você está falando? Você está drogado!

-E até parece que a senhora não sabe o que é isso...

-Eu não admito que você fale assim comigo, entendeu?

-É eu sei, pra você é só negocio, ou não sabe onde eu consegui a droga? Daquele estoque maravilhoso que tem lá na casa de praia.

-E você foi à casa de praia fazer o que? Você sabia que ela está em reforma. Eu disse para você não ir lá!

-Eu sei. Prá não ver o grande negocio que você tem. Até os meus amigos estão usando os seus produtos. E vou confessar que é da boa!

-Você não sabe do que está falando. Não diga isso para ninguém ouviu? E não vem me dizer sermão. Um dia quando você trabalhar, pagar as suas contas, vai ver como a vida é dura.

-Eu sei, blá,blá,blá. Falando nisso posso fazer um vale?

-Mas vê se não abusa.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012


 
 
 
O Broche de Turmalinas  

 

É quinta feira, dia quinze de julho, e dentre em pouco serei morto. O tempo tomará o meu corpo e o encherá de flores brancas. Aquelas de enterro. Estou em um local que chamam de “germinário”. Pergunto a outro preso o porquê de chamarem assim esse lugar. Eu e alguns outros apenas a chamamos de corredor da morte, mas estranhamente deram um tom aprazível para um lugar tão trágico. Michele, minha advogada procurou me consolar, acredito nela, ela até chorou, ela fez o que pode. Ela me disse que aqui, não podemos esperar muita coisa das autoridades. A palavra dos especialistas é a lei e eles constataram (não sei por que passe de mágica) que eu era culpado do crime. Os jurados decidiram por unanimidade a partir dali ela não conseguiu vencer na apelação do processo, estava exausta e frustrada, queria ter feito mais. Vim para esse país à procura de que? É necessária uma boa dose de loucura para se atirar assim, em uma viagem ilusória, em promessas de coiotes, de imagens de revistas e shows de televisão: aquelas figuras, de famílias sorridentes, ruas limpas, carrão na porta. Como eu pude acreditar? Ainda mais porque tenho alguma instrução, sou um professor de historia desempregado, o imbecil que saiu de Tijuana, ou melhor, dizendo de Mossoró no Brasil e atravessou a fronteira do México. Sobrevivi à travessia. Mas, acho que não vou sobreviver ao sistema. Porque na realidade eu sou o invasor, aquele que veio à casa de alguém sem ser convidado, um penetra na festa, mesmo injustiçado, hoje sei que é errado entrar assim em um país, clandestinamente, como um ladrão. Acham que eu sou culpado de assassinato. Mas e daí, se não acreditam que sou inocente? Dentre em pouco o tempo resolverá todos esses problemas. E eu serei morto.

Sexta feira, Jack o guarda, me trouxe mais uma carta de Vermont, um amigo que conheci na prisão, ele parece ser uma boa pessoa. A sua apelação também falhou. Ele acredita que tem mais um mês pela frente, logo fará companhia a mim, iremos para aquele lugar desconhecido, dentro de caixões. Permitindo-me um tanto de poesia: irei onde germina as almas cansadas. Inocentes ou não. Nesse momento, após ler a carta, sinto apenas o medo, minhas mãos tremem de ansiedade e espanto, posso ver a solidão na vastidão desse corredor da morte. É nesse momento, em que estamos sozinhos, longe daqueles que amamos que começamos a dar valor a pequenas coisas, que antes pensávamos serem banais. Por exemplo: quando eu via as pessoas olhando o céu a noite, achava a maior idiotice. Porque perder tempo olhando estrelas, se as coisas acontecem toda à hora ao nosso redor? Achava muito piegas e uma perda de tempo. Agora sei o preço que tem uma estrela que brilha no firmamento, e como é importante o simples fato de vê-la brilhar. Às vezes me pergunto como seria a face de Deus, se para nós só existe o gelo do espaço. É assim que se oculta o mistério? No gelo do espaço? Eu acho melhor deixar, por hora, falar o mistério apenas na imaginação, porque não há pensamento ou ansiedade que possa crepuscular essa idéia, sobre a inevitabilidade da minha morte.

 

Foi em meados de julho, que aconteceu “aquilo”. Eu estava deitado, lendo uma revista playboy que trazia uma reportagem sobre a cultura brasileira. A minha memória viajava nas palavras, e tentava esquecer toda essas coisas terríveis que vivia. Um guarda apareceu e disse que me preparasse que iria ver o diretor. Fiquei extático de pavor, pensei que eles tivessem antecipado a minha execução, mas a minha advogada não me alertou sobre esse fato. Mil coisas passavam por minha cabeça. Quando vieram me buscar, mal consegui sair da cela tal o pavor e a tensão, “Agora eu sei como é”. - pensei - o que sentimos quando a morte nos pega pelas mãos.

Quando cheguei à sala de interrogatório do presídio, o diretor perguntou a um homem desconhecido: “é esse o homem que procura?” o outro se resumiu em apenas acenar positivamente com a cabeça. O diretor me levantou pelo braço e me levou a um canto de parede, perguntou em inglês se eu conhecia alguém chamado Vitoria. Eu respondi que tinha uma avó com esse nome, mas que ela já havia falecido há vários anos, ele levantou uma sobrancelha curiosa, e procurou-me tranquilizar. Disse que também não estava entendendo muita coisa, mas que, eu logo saberia. Quando eu já não sabia mais o que pensar um guarda entrou, ele entregou uma pasta de papel pardo ao homem desconhecido. O dito homem desconhecido se apresentou a mim como Jeremy Cornnel, o promotor do condado. Vi no seu jeito de falar que algo estava errado, fora de lugar. Ele me olhou com um olhar misto de desconfiança e duvida. Abriu a pasta em minha frente na mesa:

- Você conhece alguém chamado Jonh Alvin Ferbenks, encanador, homem branco de trinta e oito anos, morador da cidade de New Jersey?

 - Não senhor – disse meio confuso.

Ele me olhou atentamente - há exatamente uma semana esse homem confessou o assassinato que você é acusado. A pessoa que foi assassinada lhe devia dinheiro, e parece que esse tal Jonh, era uma pessoa impaciente, acontece, para nossa vergonha e pesar, que você entrou nessa, porque conhecia a vitima também, nada tem a ver por você ser um imigrante ilegal, sem documentos, sem passado nesse país, apenas que as provas levavam a sua culpabilidade, e como aquele assassino sabia dessa sua condição, pensou que tinha encontrado um “pato” para incriminar.

Ele parou por um momento em hesitação. Depois continuou:

- É agora que as coisas vão parecer estranhas, não me levem a mal. Um dia ele se apresentou bastante assustado. Dizia coisas sem nexo. Não quis explicar as reais razões de ele ter se entregado. Disse apenas que coisas estranhas estavam acontecendo com ele. Então ele como já não agüentava mais, segundo suas palavras, decidiu-se entregar.

Eu estava aturdido. Não conseguia compreender o que realmente estava acontecendo. Onde estava a minha advogada? Não era para ela está aqui, agora? Eu tinha certeza que eles estavam fazendo algum jogo com a minha mente. Eu ainda não sabia a razão. Mas era um jogo desleal e sádico. Talvez fosse alguma técnica de Guantánamo, para confundir as nossas cabeças.

O promotor com olhar cansado apertou o nariz:

 - Eu sei que isso não cheira bem. É o caso mais estranho que já tratei, mas eu sou um homem pratico, e a verdade é que alguém cometeu o crime, e não foi você. Ele confessou e apresentou as provas que nós precisávamos para incriminá-lo, então se prepare, que dentro em breve você será deportado, depois eu voltarei, falta esclarecer alguns pontos, mas basicamente é isso.

Quando ele se levantou e já ia saindo da sala, pareceu se lembrar de alguma coisa e meteu a mão no bolso do paletó. De dentro tirou algo e colocou em cima da mesa:

- Eu sei que é contra as regras do sistema, mas diante desse caso meio nebuloso, decidi ser mais transigente. O tal Jonh pediu para entregar-lhe isso, você pode aceitar ou não, ele disse que você saberia o que significa.

O promotor saiu da sala e o diretor foi atrás dele. Em cima da mesa estava um objeto. Um broche de prata com turmalinas em forma de peixe. Eu não podia acreditar. Mas era exatamente igual ao broche de minha avó Vitoria. O que foi enterrado com ela. As coisas aconteceram aos borbotões. Não dando chance alguma para pensamentos mais profundos. Simplesmente aconteceram e não me perguntem por quê. Eu ignoro as razões.

 

Sábado, vinte e oito de agosto. Foi um mistério. Eu já me considerava morto. Já tinha abandonado as esperanças. Mas então surge isso. Mas graças a minha avó, nessa inexplicável e sobrenatural intervenção, tudo saiu bem. Depois disso tento entender o que realmente aconteceu, mas não encontro uma razão lógica. Eu só posso então agradecer a ela. Lembro-me quando deixei a prisão, aquela superestrutura negra, os holofotes, as cercas altas de arame eletrificado, e o meu amigo Vermont. Depois que voltei para casa, não consegui entrar em contato para saber o destino dele. Simplesmente não consegui por pura covardia. Nesse caso inexplicável, eu penso até agora, e estou cada vez mais convencido, dado esse acontecimento estranho, de que não há tipo de morte que possa crepuscular todas as coisas importantes de nossas vidas.

 

 
 
 
A Vingança da Lua na Casa do Sol

 
“Até hoje me pergunto. Porque não me esperou? Porque fez aquilo? Se ela tinha a chave e a fechadura da noite, um pavilhão movimentado, cantante e extenuante? Lembro-a em uma noite de luar propicio para o sono, onde o seu corpo branco repousava. Seus seios luminosos em uma estrada de malicia e elevada. Essa imagem ficará na minha memória para sempre”.

Deixem-me contar a minha historia então. Conheci a mulher de minha vida no colégio, no segundo grau de uma escola tradicional. Ela na verdade nunca deu muita bola, mas eu me apaixonei no primeiro olhar. Na primeira palavra que saiu de sua boca. Na primeira tapa na cara que eu levei dela durante uma festa na casa de uma conhecida. Eu sei, podem dizer que na realidade eu estava interessado na fortuna da família de Simone Prado, mas o que eles sabem da verdade? Só vêem o que querem ver em suas visões mesquinhas. As mesmas coisas dizem sobre a aparência de minha noiva. Como podem ser tão cegos? Feia? Essa condição cabe varias interpretações! Lembro-me da peça o Misantropo de Molière em que ele fala da retórica do amor. Das imperfeições perfeitas ou das perfeitas imperfeições, não sei exatamente, mas ali ele diz que a gorda tem porte cheio de majestade e a altiva tem a alma digna de uma coroa. É essa a definição de minha noiva. Ela tem sua própria beleza escondida. Pois quem é mais sábio? A arte é a expressão da sabedoria, da visão profunda. Quem pode dizer que uma pessoa é só isso ou aquilo? As pessoas me perguntam: “Geraldo, será que você não está se excedendo? O que você viu nela?” Eu só respondo que elas é que estão se excedendo. Eu é que sei o que sinto. O que é verdadeiramente importante para mim.

Eu sou o Marquinho. O melhor amigo de Geraldo, aquele deslumbrado! Ele coitado, sempre foi muito indulgente, míope e prestativo. Basta dizer que se existe um grande ingênuo no mundo, este é o meu amigo! Quando ele disse que estava namorando a Simone, pensei que ele tinha caído de cabeça nas pedras do parque. Vocês já viram um jacaré amarado na cintura? É ela! Isso com maquiagem! A propósito, um dia eu estava andando no centro da cidade, e ela vem saindo de uma loja chique, daquelas que uma bolsa pode custar cinco mil reais, o vestido dela dava para fazer uma cortina de janela. Mas o engraçado em toda a cena dessa tarde foi o homem da carrocinha de cachorros, que a olhava desconfiado, de rabo de olho, sem saber se a cumprimentava ou se a prendia e levava embora! Depois ele veio me perguntar se “aquilo” era mesmo uma pessoa! Tá bem. Vocês acham que eu estou exagerando. Eu já estou acostumado. Mas para prevenir e defender o meu ponto de vista, eu ando com essa foto aqui ô, os dois em uma reunião do Rotary Clube. Imaginem que um senhor achou que era uma foto de um rapaz sendo atacada por um cão da raça Pitbull! Exagero? Essa foto foi parar na internet, e garanto que não fui eu. Só sei que está fazendo o maior sucesso. Mas continuo a levar essa foto no bolso. Por quê? É simples, eu não quero ser acusado de preconceito, de ser um cara exagerado em minhas opiniões. Basta mostrar a foto!

Eu? Meu nome é Tânia. É eu quase namorei o Geraldo. Ele até que é bonitinho. Mas é muito bobo, pegajoso. Uma vez ele tentou me beijar durante uma palestra sobre homicídios premeditados na faculdade. Imagine só, estavam passando cenas de vitimas das mais horrendas mutilações. E o cara tinha estomago para beijar? Que nojo! Fora isso ele é um cara legal. Meio abestalhado, mas legal. A noiva dele? É uma pessoa difícil. Como? É extremamente arrogante, olha todos de cima para baixo, como se ela estivesse em cima de um pedestal. E daí que é rica? Ela deve ter tantos complexos que talvez esse seja um jeito de compensar. O que? Eu acho que vocês nunca a viram pessoalmente. Vão ver. Ai sim poderão dizer, se eu estou falando alguma bobagem!

   A festa de casamento tinha sido marcada para acontecer na cidade natal de Simone. O padre estava com um mau pressentimento. Onde já se viu marcar uma cerimônia de núpcias em um dia de eclipse total do sol. Quem teve essa idéia de jerico afinal? Na subida da rua principal as casas eram um recôncavo de siluetas. O declive era banhado por lunetas a procura do eclipse. Naquele final de dia, tudo que Geraldo poderia enxergar, a sua futura decepção diriam, e embora ele não desconfiasse de nada, eram janelas preocupadas de dor, de uma separação precoce. Ali, nas casas enfileiradas, os parentes da poderosa Simone de suas janelas abertas, debruçados, cogitavam se haveria ou não a festa. Todo casamento que se prestasse tinha que ter uma festa. Mesmo em um dia como aquele. A avó da noiva disse que se acontecesse esse casamento naquele dia, todos estariam amaldiçoados. Imagine, essa velha é cheia de manias mesmo.

 

- O Geraldo.

- Fala Marquinho.

- Você tem certeza do que tá fazendo? Quero dizer, será que você quer mesmo se casar?

- Eu estou aqui, não estou?

- Mas será que você está bem? Quero dizer, se alguém realmente tá certo dessas coisas? É um negocio muito serio essa de casamento.

- Eu sei que é serio. Hoje é o dia mais feliz de minha vida!

- Enlouqueceu.

A cidade do interior onde a festa de casamento foi organizada ficava a poucos quilômetros da capital. Cidade pequena de oito mil habitantes, onde o sobrenome Prado era motivo de orgulho para todos, afinal, foram eles que fundaram a cidade. Praticamente eram donos dela. O casamento por coincidência iria acontecer no dia de um eclipse total do sol. Em um espetáculo infrequente da natureza, o astro rei seria engolido pela dama da noite. Diz o ditado popular que casamento em dia de eclipse é morte na certa ou azar. Que a pessoa que desafia essa maldição, carregará a desgraça para o resto da vida.

- Tá vendo Geraldo. É melhor desistir cara. Ainda dá tempo!

- Mas como você é inconveniente. Não está percebendo que os seus exageros são impróprios? Aonde já se viu!

No horário marcado, na fazenda dos Prados, tudo estava pronto, o grande palanque do show musical com uma dupla sertaneja famosa. As mil mesas. O bufê gigantesco. Os fogos de artifício para a noite. A presença de mais de mil e quinhentos convidados, a nata da sociedade. O noivo nervoso e os pais impacientes. Ela se demorava.  O pessoal dançava animado. Mas as coisas começavam a acontecer. Um tio de Simone caiu da cadeira bêbado e quebrou o nariz. A comida e a bebida percorriam as mesas como se os pais da noiva fossem irresponsáveis com o colesterol dos convidados. Um gordo teve uma séria indigestão e foi levado as presas por uma ambulância. Chegou a noticia que um primo do padre tinha sido preso por direção perigosa. Uma convidada teve um surto psicótico e mordeu a orelha de outra senhora, desafeto de muitos anos.  E nada de Simone chegar. Demorou muito. E então tudo ficou escuro. Mesmo com a banda que tocava, poderíamos sentir um estranho silêncio por trás dos sons do ambiente. Como mágica todos silenciaram, até a musica. Todos olhavam para o alto, como se estivessem hipnotizados, mesmerizados. Por poucos minutos o mundo parecia ter parado. E então subitamente, a luz do sol começou a voltar enquanto a lua precipitava-se no plano invisível do céu. E apesar de todo esse espetáculo, Geraldo não conseguia se esquecer de sua noiva. Enfim onde estava ela? Simone não apareceu. E a noite fechou a festa.

Em meio aos choros das mães e constrangimentos dos pais, os garçons e empregados recolhiam as mesas. Geraldo estava cabisbaixo e com os olhos injetados de cólera. A sua frente ainda se encontrava a prima de Simone. Em suas mãos uma carta que dizia de maneira sumaria e sintética, as razões da ausência da noiva e a fama destruidora que tinha o dia de eclipse.

 

Caro Geraldo.

 

Como pode notar, estou desistindo do casamento. Quero que saiba da imensa dor e constrangimento, que sinto nesse momento tão importante. Se isso aconteceu, não foi por culpa sua, a única explicação razoável, é a de que apesar de seu carinho de sua atenção extremada, eu não pude sentir o amor que lhe é merecido. Igualmente, para maiores esclarecimentos, é de supro reconhecimento, a aclaração de que amo outra pessoa. Mais precisamente uma pessoa bem próxima de ti. Mais precisamente, a pessoa de Marcos Teixeira. Sim o seu amigo Marquinho é aquele a que dedico um amor verdadeiro. E já a bom tempo, desde que estudava o segundo grau. Sinto verdadeiramente que as coisas tenham acontecido nesses termos, mas espero que compreenda, e desejo a ti toda a felicidade.

Da sua Simone Prado.

 

 

Na casa grande da fazenda, no quarto que tinha sido preparado para eles, Geraldo cogitava, e apesar da dor, seus pensamentos podiam se dar o luxo da poesia: “porque Simone saiu secreta, envolvida nas carcaças de nossas lembranças? Olhos brilhantes nas trevas, onde me aprisionastes? Estava preso a ela por um helo de amor. Ela se foi, deixando a sua presença”.

Mas, deveras, a sua presença ainda permanecia naquele quarto. Invisível e irresistível. Essa presença invisível, era a força que lhe prendia. Apesar de toda a ironia, da miopia, e de todo o mistério do eclipse.

 

terça-feira, 28 de agosto de 2012


 
 
 
O Lugar de Prometeu  

                                                 

PRIMEIRA PARADA

Quando cheguei ao fim da escada, pude perceber o que era aquele lugar. Um mundo sombrio e fronteiriço. O transito de automóveis ainda corria célere atrás de mim.  Olhei para cima, e em uma placa confusa que bem poderia ser “Hardes” ou “Cantinho do Inferno”, não estou certo quanto ao nome correto porque tudo parecia estar misturado, a realidade com a ficção.  Se não fossem aquelas sombras que passavam, poderia jurar que estava diante da entrada do metrô. De qualquer metrô normal, e não da passagem do submundo. Entrei mais, descendo as escadas. Nas catracas eletrônicas, as formas escuras em fila, passavam direto, sem a necessidade dos tickets de passagens. Mais para dentro, brilhos incandescentes como fogo, saiam das paredes de rocha vulcânicas. Parecia uma caverna, que eu ainda não saberia dizer, com certeza, ser dentro da minha imaginação ou no ar circundante de nevoa. Passei pelas catracas como uma forma translucida. Caminhei até a plataforma abrumada, naquele exato momento que chegava um trem. E logo depois, as portas automáticas se abriram e personagens fantasmagóricos e estranhos como zumbis, com seus corpos carcomidos e putrefatos, saíram dos vagões.

Logo depois, pelos cantos dos olhos vi duas figuras que deslizavam naquele ar denso e embotado. Percebi tecidos transparentes que dançavam no movimento de corpos belos. Observei reflexos tênues de luzes que mal iluminavam aqueles rostos alheios. Pequenos movimentos nos cabelos daquelas mulheres pareciam pequenas serpentes de cores diversas. Enquanto as olhava, elas me viram e pude perceber olhos sedutores e faiscantes a estudar-me, a medir-me, querendo solidificar a minha carne. Podia adivinhar pensamentos medonhos, e então meus membros, os órgãos, o sangue e até o meu espírito, começariam a se enrijecer, como se quisessem tomar forma de mármore. Um fadário cruel, que meio confuso, percebi existir em minha mente. Apenas em minha mente. Meditava de forma calma. Admiti, nesse enleio exótico, que por ventura ficasse cristalizado na imobilidade eterna, para mim seria intolerável. O meu sangue misturado indissoluvelmente as moléculas de pedra. Não. Seria intolerável mesmo. Eu uma estatua trágica e hipotética, paralisado no exato instante em que caminhava curvado e pensativo. Enquanto examinava essa idéia, esse pensamento problemático, um sorriso de dentes pontiagudos de um rosto bonito de uma daquelas mulheres, me pegou de surpresa, e quase fui mordido por pequenas presas que se arremessou daqueles cabelos em movimento, a procura de meu rosto. Nessa imagem confusa, ficou gravado na memória, apenas o movimento frenético de centenas de formas alongadas que se cruzavam se enroscavam e se mordiam nervosamente, do alto daquela cabeça. Daquele admirável semblante. Depois dessa pequena divagação, elas já se afastaram e desapareciam em uma cortina de fumaça.

 

SEGUNDA PARADA

Caminhei mais, e ao virar as vistas, pareceu-me vislumbrar um rosto de mulher triste. Uma jovem solitária. Estava em um banco sozinha sentava ou pousada. Chamou a minha equívoca atenção, as penas marrons brilhantes que explodiam em brilho. Não era um pássaro. Também não era uma mulher. Se dissesse que era uma cabeça de mulher em um corpo de pássaro, talvez não estivesse dizendo uma inverdade. Quem sabe, a minha fantasia representasse o máximo de uma descrição naquelas condições. Talvez palavras não pudessem expressar o que via exatamente. E logicamente, por alguma razão duvidosa, essa descrição, seria incerta, uma vez que, algo parecido a um fluxo de consciência estivesse em jogo, nesse momento ambíguo. Ou poderíamos falar que nesse caso, tínhamos algo mais parecido a um monologo interior acompanhado de reflexões fantásticas e antigas. Formas arcaicas em profundas reflexões. Caminhei mais um pouco em direção a nevoa espessa, convicto que tinha que atravessar aquele lugar.

Achei melhor esperar o trem que iria para a zona norte, e parei meio aturdido. De um canto escuro, perto de uma máquina de refrigerantes, viam-se dois olhos de animal, achei estanhos aquelas pupilas que se destacavam na escuridão quase material. Naquele canto de paredes, dali subia no ambiente, um bafo terrível, um bafo bovino. Enquanto observava essa terrível maravilha, ouvi atônito, barulho de cavalgada as minhas costas. Vislumbrava homens em corcéis. Mas para meu espanto eram corcéis quase homens. Algo que desafiava o limite entre as espécies, que vinham de tempos remotos. Cavalgavam em grupos de três, enquanto passavam sombras de pessoas apressadas. Cartazes da Coca cola e do City Banks estavam coladas de modo desajeitado nas paredes de pedra.  Criaturas que pareciam crianças ou caprinos assanhados estavam misturadas com outros seres indefinidos e dançavam uma musica eletrônica, fazendo alaridos obscenos.  

Outro trem chegou. E se ouviu uma sineta de aviso. Dele saíram figuras cinzentas como estatuas velhas, cobertas com capuzes e capas, carregando urnas. Uma procissão grave e ritualística, que alguns semblantes pareciam despertar minha memória. Outras imagens antigas. Focos de chamas brotavam aqui e ali de algum ponto das paredes rochosas, e davam uma iluminação fantástica a aquele cenário. E para o meu pesar, no meio de toda essa cena irreal saída da lembrança de algum erudito, ali estava “o meu conhecido”. Aquela forma escura de asas, que posou e agora andava perto de mim com passos imprecisos. Por estranho que pareça, eu pressentia que “aquilo” havia mudado, ou que talvez a minha loucura tenha mudado, para uma manifestação menos violenta. O que significava tudo isso? De onde vieram esses seres que pareciam desafiar toda a lógica das coisas? E também onde estavam as pessoas normais? Será que tinha morrido, e agora estava no submundo espiritual? Será que o mundo tinha acabado, destruído de alguma maneira por aquela versão tosca saída de algum livro de mitologia? “aquela coisa” encostou a cabeça em minhas pernas e esfregou a sua enorme cabeça para um gesto de carinho. Não consegui segurar uma risada nervosa e aliviada.

 

TERCEIRA PARADA

O meu trem chegou e embarquei em um impulso, com idéias meio vagas e calafrios pelo corpo.

No interior do vagão, uma fila de figuras sentadas no escuro dava uma sensação indefinida de perigo. O silêncio era de sepulcro. Estava cansado e sentei-me também. Não me atrevia a olhar de perto aquelas “pessoas”. Não me atrevia a dirigir a palavra a ninguém. Às vezes com a velocidade, flashs de luzes penetravam no vagão, e conseguia perceber que as pessoas ali, não estavam propriamente vivas. Pareciam àqueles zumbis que havia visto na plataforma.  E um arrepio percorreu a minha pele. Da escuridão podia sentir quando algumas “daquelas pessoas” viravam a cabeça para olhar-me. Cabeças carecas. Corpos esquálidos que exalavam um odor desagradável de morte. Uma memória pareceu despontar e gritava: “campo de concentração”.

Oito estações depois eu desci. Andei três quarteirões para chegar à delegacia de policia.     

Enquanto me dirigia para a delegacia de policia, minhas lembranças voltaram ao rochedo, onde todo o sofrimento começou. O incomodo lugar de morte. Nessa cena, o meu corpo estava amarrado ao rochedo, a mercê da eternidade. Do tempo que passava caminhando. Um momento fugaz. Se alguém acendesse um fósforo, para oferecer uma vela em meu funeral, seria contado apenas o período em que levaria as chamas do palito de fósforo para se consumir. Algo que para o “grande deus”, fosse tão insignificante, como o primeiro segundo de uma criação, mas para o meu sofrimento, parecesse à grande eternidade de minha mente. Assim correu aquele tempo pirado, enquanto eu fiquei no rochedo. Nesse pensamento metafísico incabível, tremi o frio embaralhado com o medo, e me perguntava se “eles” haveriam de voltar. Se meus algozes desperdiçariam a oportunidade de ganhar mais algum dinheiro. Ou eu apenas ansiava que eles voltassem somente para vê-la, a minha esposa, e depois logo me arrependeria dessa veleidade. Em minha condição miserável, não sabia se desejava que eles voltassem ou não. Preferia o alivio de uma morte rápida ou a esperança duvidosa naquele sofrimento? Eis a duvida. Ou ainda, se eu permaneceria amarrado naquele lugar, à beira do precipício, e pudesse sobreviver. Eu sou um empresário respeitado tratado como um cão, deixado nesse lugar para morrer, pensando como se pensamentos naquela condição dessem perspectivas. Com a visão embaçada, consegui enxergar alguma coisa. Poderia jurar por tudo que era mais sagrado, que era uma pedreira, pois ao longe parecia vislumbrar estruturas como máquinas e tratores, mas que pareciam ter funcionado em outro tempo. Tudo parecia abandonado e remoto. E teria pensado que estava fora do mundo, se não fosse por aquela grama verde por entre as rochas que podia tocar com as mãos, e a visão daquelas pequenas flores amarelas que cresciam por ali, dando-me uma esperança, um vislumbre de realidade.

 

 

QUARTA PARADA

Já quase se fazia noite no rochedo. Senti alguma coisa no bolso da calça. Talvez fosse o meu telefone celular totalmente destruído. Era o telefone celular. Podia perceber que o aparelho estava destroçado mesmo. Procurei respirar lentamente, pois sentia dores agudas como se algumas de minhas costelas estivessem quebradas. Senti sangue coagulado na face esquerda. Meu olho esquerdo estava fechado de tão inchado, com um hematoma roxo e protuberante. Agora lamentava. O que me levou a essa situação. Tudo me foi tirado. E nesse momento confuso, senti falta dela. De seu cheiro. De seus cabelos. Da maneira de como o seu corpo moreno ficava suado depois que fazíamos amor. E com esses pensamentos eu quase esqueci. De outras coisas é certo. De outras preciosidades, é sensato dizer. Mas imaginava que determinadas coisas, teriam valores diferentes para diferentes pessoas. Alguns sentiriam falta do luxo e do conforto. No entanto, paradoxalmente, eu sentia mais a falta “dela” do que qualquer outra coisa. Pois é, determinadas coisas são insubstituíveis. Como a ilusão de uma união perfeita. Do ordenamento do mundo, que eu tinha e sentia quando estava com “ela”. E isso quase me fez esquecer qual era o verdadeiro significado da palavra traição. Não uma daquelas besteiras como um amante ocasional. Mas a cilada e a traição. O plano e a ganância. Depois de demorada reflexão, entrevia um quadro aterrador que custava a acreditar, mas que aquele rochedo, as feridas e a humilhação não me deixavam duvidar. Só conseguia ver na escuridão da noite, os rostos de minha esposa e do meu melhor amigo.

Deixaram apenas a minha pele de ruínas. Mas aos poucos minha cabeça começa a clarear. E detalhes que preferia não lembrar, vêm à tona. O mais estranho é a origem da dor torturante que vem das minhas entranhas e daquela imagem extraordinária. Daquela “forma negra” que aparece a cada seis horas, durante o dia, e começa a rasgar minha barriga e a devorar minhas vísceras. Recordo que da primeira vez, o vi de longe, uma enorme forma negra que planava. Esse “ser” tinha alguma majestade em seu vôo, deu algumas voltas em círculos a uns cinqüentas metros de distancia, acima de minha cabeça, e veio se aproximando devagar. E então pousou bem perto, asas abertas, um manto negro de penas, com os olhos amarelos como de um corvo. Na verdade, “aquilo” parecia com um enorme corvo, pelo menos era essa a imagem que eu imaginava ter diante de mim. A “criatura” instintivamente, para avaliar melhor o que estava a sua frente, virava a cabeça varias vezes, em um ângulo estranho. Aterrorizado senti quando pela primeira vez, “aquilo” rasgou o meu ventre com o bico e enterrou-se para se banquetear. É difícil de descrever o que senti naquele momento. A dor parecia queimar como num festim de chamas. Na ânsia de me livrar dessa medonha experiência, me debatia, e as correntes de aço apertaram mais ainda o meu corpo. Isso durou alguns instantes até que um desfalecimento providencial me afundou na escuridão.

Despertei no meio da noite. O suor me banhava da cabeça aos pés. As correntes haviam escancarado feridas por todo o meu corpo, mas de maneira inexplicável, da minha barriga não vinha nenhum sinal de que houvesse sido aberta e as entranhas a mostra. Não senti nada, nenhuma dor. E mesmo assim, não conseguia olhar. Não queria olhar. Na certa esse torpor que experimentava, era característico da aproximação da morte. O forte vento açoitava os meus cabelos e rosto, e uma nebulosidade crescente, fez com que eu adormecesse.

Uma manhã quente me surpreendeu, com os seus primeiros raios de sol. Meio tonto tive uma surpresa, que não sabia se era uma graça ou uma confirmação de minha loucura. O meu ventre estava intacto. Nenhum sinal de que no dia anterior eu havia sido aberto e banhado em sangue. Quando estava me sentindo quase feliz por aquela dádiva, “a coisa” voltou. E repetiu-se a mesmíssima cena fantasmagórica do dia anterior. E o mais estranho, essa cena se repetiu outras três vezes naquele dia, em uma sucessão de dor, desfalecimento e despertar. Foi assim esse inferno. E então, a noite, como um emblema de irrealidade, caiu mais uma vez jogando a minha pobre alma na vala do esquecimento.

 

 

QUINTA PARADA

Na manhã do segundo dia, mesmo depois de sair do sono, mantive os olhos fechados porque depois de tudo que passei, acreditava firmemente que enlouquecera. A fome e a sede estavam me matando com certeza. Mas pensava com certa lógica, que se não visse a tal imagem terrível, não sentiria nada, e aquela aparição não voltaria, não materializaria o meu penar. Mas mesmo com os olhos cerrados sentia que alguma coisa estava ao meu lado. E quando algo tocou o meu ombro, comecei a chorar. Eu tinha certeza que “aquela coisa” retornara e que logo iria recomeçar a sua refeição maldita. No puro susto abri os olhos, e ao invés do que esperava, divisei o rosto de um homem moreno de macacão azul marinho. Era um operário da pedreira. E nessa surpresa, o meu coração carcomido de dor, quase parou de bater.

O que aconteceu depois foi uma sucessão enevoada de ações que iriam levar-me a um hospital publico. Policiais tentaram um interrogatório na maca daquele hospital lotado. Disse que não me lembrava de nada. O que não era propriamente uma verdade. O que eu queria era ganhar tempo, entre aqueles policiais, poderia estar algum assassino, a mando “deles”, esperando só uma identificação positiva. Um médico e uma enfermeira apareceram e notaram através de um exame rápido, que eu, esse homem a sua frente, tinha uma excelente dentição e que, então, possivelmente, estavam diante de pessoa com certa posse, mas ficaram meio desalentados diante da minha “amnésia”; trataram-me de uma desnutrição causada por dois dias de privações e dos ferimentos causados pelas correntes de aço que marcaram no corpo desenhos de sangue seco e cascas de chagas. Em um quarto mal iluminado, deram-me alguns medicamentos de forma mecânica, sem maiores atenções ou palavras de conforto, e depois dos cuidados, saíram conversando alguma coisa sobre um fracasso em uma cirurgia e a possibilidade de greve dos funcionários do hospital.

Uma semana depois, estava me sentindo mais forte.

Mesmo sentindo a umidade das feridas, queria sair dali. No final de uma tarde escutei sirenes e pessoas correndo pelo corredor. Ouvi um enfermeiro dizer a outro, que um circo havia pegado fogo e que muitas pessoas estavam feridas. Aproveitando que a maioria dos profissionais estava mobilizada nessa operação, fugi. A rua à noite me acolheu sonolento e confuso, devido aos medicamentos. As pessoas eram meras sombras. Os automóveis velozes matizes de cores. Os sons chegaram a mim como que transportados por uma vaga. O meu rosto estava lívido de frio, e latejavam minhas feridas como lâmpadas que se acendiam e se apagavam em ritmo, no meu corpo, de maneira aleatória. Ao dobrar uma esquina de uma rua de iluminação precária, senti que uma forma escura sobrevoava a minha cabeça. Uma forma negra, sarcástica e enervante, como a fazer círculos de trevas. Procurei não me importar. Ao atravessar a rua quase fui atropelado por um automóvel. Agora tudo parecia ter um aspecto esquisito. Aquela rua parecia medonho. De uma lanchonete vinha um som estranho como o dilacerar que fazem animais carnívoros quando se alimentam. Enxuguei o suor frio de minha face com a manga da camisa, e diminui a velocidade dos passos.

 

 

SEXTA PARADA

Caminhava agora bem lentamente, começava a lembrar-me do dia anterior ao seqüestro e agora adivinhara como eles conseguiram dar o golpe. Tudo poderia ter começado naquele dia, na recepção da noite, na luxuosa casa de praia. Ela, a minha esposa, estava vestida de negro e suas pernas grossas de mulata chamavam a atenção. Pode parecer um contra censo, mas eu não conhecia muito bem a minha esposa, caso contrário, teria adivinhado que tinha me casado com uma mulher que gostava de futilidades, que era insaciável e que gostava de uma ostentação excessiva. Fato que me deixaria em duvida com relação ao sucesso do meu matrimonio. Se soubesse, talvez o meu futuro tivesse sido outro. O meu amigo, o advogado havia dito varias vezes que ela era a mulher ideal para mim. Agora percebo que ele tecia elogios como se fazem mortalhas, como uma vestimenta de pano de palavras bordadas. Ele era como um bordador, que dava uma forma branca de imaculada ao tecido, cheia de rendas e de flóreas imagens, apenas para encobrir um corpo que já estava sem vida e que logo iria apodrecer. Afinal para que serve uma mortalha? Uma figura de linguagem, para cobrir aquele relacionamento que no coração da minha “querida companheira” já estava morto.

Então o meu advogado, aquele falso amigo, disse palavras agridoces, quando na realidade em seu intimo, queria dizer outras coisas. Desejava minha mulher quem sabe, talvez, enquanto invejava a minha fortuna e a minha felicidade, e por sua vez, provavelmente ela mantinha um ressentimento secreto, por mim seu marido, sem uma razão mais coerente, fruto da frivolidade de sua mente. É assim que deduzo as coisas, com a minha cabeça confusa, as razões de todo esse acontecimento. Porque como ela poderia culpar alguém por ela mesma ser tão volúvel e vazia? Um envoltório. Um invólucro de uma nobre esposa, que de fato por baixo de tudo aquilo, era uma mulher suscetível a qualquer conversa mais excitante e as promessas de devassidão e doideiras. Sempre fui um homem avesso a aventuras. Uma pessoa simples nos meus objetivos, mas sólidos em meus passos rumo às conquistas. Fiquei milionário agindo assim. É certo que às vezes parecia meio distante, mas era porque, tinha receio de fracassar, de perder o meu posto duramente conquistado. Amava minha esposa. O problema foi que talvez, esse meu jeito, meio absorto e neutro, fez brotar um ressentimento tolo por parte dela. Ou infelizmente, sendo ela quem é qualquer outra desculpa pareceria correta, para aquela alma tortuosa de mulher fazer o que fez. Talvez mesmo que eu fosse perfeito, mesmo que a chama do entusiasmo me devorasse, ela me atraiçoaria, pois parecia que o vil advogado, havia despertado uma coisa secreta no intimo daquela mulher, algo mais condizente com os desejos de uma harpia. Mas tudo foi descoberto tarde demais. E de minha parte, a paixão foi a mais espessa das vendas para os olhos.  

 

 

SETIMA PARADA

Fiz uma retrospectiva rápida. Tudo aconteceu em uma manhã de sol. O meu motorista havia chegado cedo à minha cobertura de luxo. Tomei frugalmente o meu café da manhã com “minha esposa”, me despedi dela, peguei a minha pasta de prata e desci o elevador. O que mais? Deixem-me lembrar. Ah sim. Entrei no carrão preto e dirigi-me para o escritório pela avenida principal. Dentro do automóvel, comecei a folhear uma revista sobre economia e a pesquisar a tortuosidade da linha do gráfico do mercado de ações. Era um habito meu. Uns vinte minutos depois, enquanto eu estava concentrado nos números da bolsa de valores, o carro deu uma parada brusca. Tudo foi muito rápido. Apesar da habilidade do meu motorista, duas caminhonetes fecharam o automóvel, um a frente e outro atrás. O carro a prova de balas poderia resistir por alguns minutos até a chegada da policia. Mas nenhum tiro foi disparado contra o automóvel. Oito homens encapuzados e armados de pistolas e fuzis desceram das caminhonetes. Quando nos cercaram, o motorista abriu as trancas automáticas das portas. Enquanto eu esboçava um olhar de surpresa e incredulidade, o meu motorista fiel, amigo de muitos anos, com os olhos marejados, apenas esboçou uma palavra: “desculpe senhor, ela me obrigou”. Enquanto eu era carregado à força por aqueles homens pude ver, como em um desfecho sinistro, um sujeito se chegou perto do meu motorista e desferiu-lhe um tiro na cabeça. Extinguindo a vida de um pai de cinco filhos. A pergunta agora girava em torno do que teria acontecido para que ele tivesse aderido a essa trama. Ele havia dito que “ela” o havia obrigado. Ela quem? Obrigado através do que? Eu só comecei a juntar as peças desse quebra cabeça no outro dia, após uma surra atroz, e depois que fui levado para a pedreira.

Eu estava mal. Os bandidos estavam todos usando aquelas mascaras de teatro: a alegria, a raiva e a tristeza. Um seqüestrador baixo, forte e com uma voz rouca, estava reclamando pela demora de receber a sua parte. Em sua fúria, inadvertidamente havia dito o endereço do “contratante”, que era por uma “incrível coincidência” o endereço do meu amigo advogado. De onde eu estava, eu vi quando o homem baixo gritou e gesticulou, balançando uma pistola numa das mãos, enquanto eu estava deitado de costas amarado e amordaçado. O bandido havia dito em alto e bom som se aquele “casal de animais” estava pensando em enganá-lo, que ele iria deixar aquele advogado nu e sangrando na porta do fórum e que aquela “cadela mulata” iria vender o corpo até pagar o que lhe devia. Aquele bandido estava com muita raiva deles. Talvez por isso, eu tenha sobrevivido, contra todas as expectativas de meus algozes. Os outros do bando haviam dado ao homem baixo e forte a incumbência de decidir sobre a minha morte. As propostas eram arrepiantes. Um sugeriu que cortassem o meu corpo vivo e desse aos cães. Outro sugeriu que simplesmente dessem um tiro na cabeça do “pacote” e colocasse o corpo em um carro e depois o incendiasse. Um terceiro falou que bastaria usar “o método tradicional” de colocar-me vivo dentro de um grande saco de estopa cheio de gatos raivosos e serpentes venenosas, e depois jogar tudo no rio amarrado a pesadas pedras.

 

 

OITAVA PARADA

O baixinho pensou, e aborrecido decidiu, por alguma razão, ele mesmo fazer o serviço. Colocaram “o pacote” na mala de um carro e ele sozinho, o levou. Por uma razão o raptor estava irritado com o “casal”, e por conta disso, decidiu-se por fazer algo inusitado, me amarrando ao rochedo da pedreira como uma espécie de oferenda a Zeus, o ídolo preferido do Monte Olímpio. Agora eu me lembrava de tudo. A minha memória voltou com todos os detalhes e cores. Recordo-me que o baixinho havia me entregado em uma espécie de ritual a Zeus. E imaginei que, o baixinho, partindo de um raciocínio sofistico inconveniente como uma pugna, avaliava: se eu sobrevivesse era porque Zeus assim quisera, e eu poderia denunciar o casal, e o bandido teria a sua vingança, sem sujar as mãos. Uma vez que, ele estava usando a mascara da tristeza, e eu não poderia reconhecê-lo. Se eu não sobrevivesse, era porque a sua oferenda havia agradado por demais o deus. E tudo estaria também a contento para ele. Pelo menos foi esse o meu raciocínio. Apesar de minha tentativa de entender essa mente, nada parecia ser coerente ou real, ou eu estava em um pesadelo, ou o mundo é que era um pesadelo. E as coisas estavam transcorrendo naturalmente como são, e apenas eu não percebia esse fato. Mesmo assim, apesar de minha patética tentativa de entendimento de tudo isso, esse bandido, vangloriava-se de assassinatos singulares, e apesar de holocaustos e rituais, ele era vingativo mesmo. Por causa de sua propensão a coisas terríveis, pensava em uma pequena e singela vedetta sobre aquele casal impuro, independente de minha sobrevivência. Pois eu era descartável. Vamos entender as tortuosidades, de neurônios embebidos em um caldo qualquer, daquela mente criminosa.

Depois dessas lembranças que vieram céleres, fiquei chocado. Meio tonto. Aquele ar meio saturado de um odor característico, com algo que lembrava enxofre e alcatrão, quiçá, tivesse algum efeito nefasto sobre a minha enxaqueca. O certo é que a tontura tivesse mesmo como origem o medo bruto, que se apoderou de mim. Tentei acalmar-me, afinal tinha conseguido fugir de todos, e estava ali incógnito. Eu estava deitado em posição fetal, vestido como um mendigo, mas me decidi sentar e pensar, agora havia me situado e percebi que estava sentado no chão imundo daquela rua mal iluminada. Pensava para onde iria. Para uma delegacia de policia é natural. Mas teria que pegar um ônibus ou metrô. Estava no ato de pensar quando a minha visão deparou-se com uma aparição que gelou o meu sangue nas veias. Perto de mim, apenas a dois metros de distancia, aquela grande “forma negra” me observava com aqueles olhos infernais. Eu já combalido, retesei-me a espera do primeiro ataque excruciante. Mas estranhamente “o pássaro” ficou parado olhando-me, como se fosse um animal de estimação, dócil e calmo. Mesmo sendo intensamente indesejável. E ademais, aquela forma estranha e descomunal era uma visão medonha e causava calafrios. Aproveitando que aquele ser, havia se transformado de monstro em um cachorrinho de senhora, me levantei e corri o mais rápido que pude. Para dentro da noite.                      

 

 

ULTIMA PARADA

Estava como uma lousa fria, deitado na entrada do metrô. Havia adormecido de tanto cansaço. Dormia. E foi com repulsa verbal em meu sonho, ou seria melhor dizer, pesadelo, que comecei a praguejar contra tudo e contra todos, depois de toda a retrospectiva em minha mente. Como pude ser tão burro? Como pude errar tanto? A minha cabeça latejava pelas feridas. E dentro desse pesadelo enevoado, “a forma negra” voltou da bruma, e mais uma vez fui submetido a ele, para que devorasse minhas entranhas. Nesse pesadelo eu era um silício de ossos. Onde as lembranças do amor se moviam. Acordei. Um vento frio transpassava-me a coluna vertebral. Pensei nos filhos que nunca tivera com minha esposa. Porque pensava nisso agora? Como um jato de fogo movia-se as imagens do passado. Um jato de fogo e impaciências. Logo saberia que subitamente havia despertado daquele pesadelo para entrar em outro, aparentemente mais real.

Como eu estava perto da entrada do metrô as altas horas da noite, pensei que talvez fosse melhor ir nesse transporte mesmo, tentei falar com algumas pessoas apressadas que passavam para pedir- lhes emprestado algum trocado para a passagem. Mas eram sombras que me ignoravam. Figuras escuras e nubladas. Logo eu, que tinha tudo, estava agora como um indigente. Então me decidi a descer as escadas do metrô. Ou melhor, dizendo, “a caverna”.

 

Foi assim que relembrei todo esse processo nefasto, que quase culminou com a minha morte e a vitoria daquele casal adultero. Mas estava deprimido. Desconfio que talvez, de alguma maneira, penosamente, mereci esse formulário da morte. Essa loucura que me acometia. Talvez eu sentisse um anseio de autocomiseração. Se tivesse sido um marido melhor, talvez nada disso tivesse acontecido. Ou estava enganando a mim mesmo com essas palavras? Pois na dor, procuramos respostas para o nosso próprio sofrimento. Agora, após todos esses acontecimentos, era como se uma dança de insetos imaginários começasse a molestar-me. Minha própria imprevidência, a descoberta terrível das verdadeiras razões de meu seqüestro e tortura, pareciam insetos ferroando a minha pele e ossos.  Enfim. Culpas dentro de culpas. Mesmo agora, liberto do rochedo, “aquela coisa” me acompanhava. Visível ou não. Inteiro ou não em minha cabeça. Às vezes era apenas uma sombra, em outras vezes era de uma nitidez de detalhes corrosivos. Aquela sombra faminta que se banqueteou de minhas vísceras imaginarias, naquele local de morte. Apenas alguém com uma mente enferma poderiam imaginar um “ser” assim, ou tentar explicar, esses acontecimentos extraordinários. Não sei ao certo sobre coisa alguma. Se minhas idéias tem alguma coerência ou se estava tentando dar coerência a coisas naturalmente incoerentes. Sem saber nada de naturalismo ou, seja lá, o que pudesse nomear a ciência que estudava esses tipos de seres. O porquê “daquela coisa” se cansar de comer as minhas partes imaginaria, e que agora, por alguma razão hermética, era um companheiro improvável e sinistro. Se na realidade não se alimentou em nenhum momento de mim e isso teria sido um delírio causado pelo meu sofrimento. Eis a duvida. Na verdade, eu duvidava apenas de outros acontecimentos e não da existência daquela coisa negra de asas descomunais. Afinal, esse “ser”, ou “pássaro” ou “fantasma”, estava caminhando naquele momento a meu lado como um guarda costas, e era de uma nitidez e de uma materialidade, difícil de ignorar.

A maior surpresa de toda essa historia ocorreu quando finalmente cheguei à delegacia, e procurei um amigo da policia da zona norte. Quando cheguei à frente da delegacia o “estranho acompanhante” sumiu. Eu não me importei com isso, pois já estava me acostumando com essa insanidade. O meu amigo policial pegou-me pelo braço e cuidou de me acalmar. Primeiro me ofereceu uma cadeira. Depois um copo com água. E ainda me ofereceu um cigarro esquecido de que eu não fumava. Ao apresentar a denuncia de tentativa de homicídio, o intento quase realizado a mando de minha esposa e o amigo advogado, eu tomei conhecimento da inverossímil historia de um grande pássaro negro que havia devorado quase que completamente os corpos de um casal. De como esse animal estranho, tivera a inteligência sobrenatural, de penetrar nos aposentos daquele casal desprevenido naquela mesma manhã. Desse ato inacreditável, restou como prova material, uma gravação de uma câmera de segurança do hotel, onde se podia ver bem nitidamente uma forma escura bem maior que um abutre, e que saiu estraçalhando o vidro da janela.  Ao mostrar-me os documentos daquele casal, eu finalmente percebi que o meu delírio era capaz também, de atos de vingança. E para que uma tragédia dessas estivesse completa, bastaria tão somente, à ajuda, imprescindível dos deuses.