segunda-feira, 30 de julho de 2012







Escrita de Índio 

Naquele momento, as palavras viam com dificuldade para Guaci. Ajeitou o cocar e guardou o arco debaixo da mesa. Pegou a caneta e começou a escrever no corpo. Será que deveria começar dos braços para as pernas, ou da barriga para o rosto? Estava indeciso.  Não conseguia se lembrar do tema, ou melhor, para quem estava escrevendo mesmo? Pensou logo no seu sagüi. De como ele era feliz. Ele tinha mãos igual gente, mas não precisava mandar recados para ninguém. Que sorte a dele. Bem, ele recordou-se de que precisava minutar para o chefe Juruá.  Queria contar ao amigo, como ele havia arranjado uma esposa japonesa. Pensou um pouco, e começou a rascunhar pelo braço esquerdo. Ainda bem que não estava suado, porque a letra sairia meio inteligível. Lembrava-se que uma vez teve que refazer oito vezes uma petição. Naquela ocasião o seu pai, que não sabia as coisas do homem branco, o estava aborrecendo, por causa de uma carta de amor para uma índia caiapó do outro lado do rio. Conseguiu escrever a carta e foi levar o recado para o pai. Ele esperava que no outro dia as coisas ocorressem de maneira apropriada, mas na virada da quarta oca, Guaci se apaixonou outra vez. Foi quando viu passar uma jovem índia de outra tribo, uma estudante que trazia no corpo, um texto inteligente com uma letra miúda e invertida. Seus olhos viram o brilho, na pele morena e jovem ele podia discernir umas primeiras palavras de Descartes.
Tudo seriam as mil maravilhas naquela semana, se um acontecimento enfadonho não lhe tivesse tirado o sossego. As suas habilidades de redação seriam necessárias para tentar resolver um problema domestico mas de grande repercussão. No dia seguinte, receberam visitantes inesperados advindos do outro lado da reserva.  Guaci com seus olhos de carcará, de um escritor experiente, fez uma varredura nos visitantes. Com a sua técnica, ele começou a esmiuçá-los, a medi-los em sua aparência e originalidade. Vamos à descrição:
“Eram dois índios. O mais velho tinha o rosto oval, e ostentava um cocar azul nos lados e vermelho no alto. A sua expressão denotava certa autoridade. Os rostos pintados nas bochechas gordas eram de listras de um azul escuro. No seu peito, um colar de pequenas cordas claras e uma fileira de objetos brancos que lembravam pequenos dentes pontiagudos, e davam-lhe um aspecto mais feroz. O dorso era igualmente pintado, por listras verticais intercaladas por faixas finas e grossas. O mais novo estava logo atrás do chefe, onde se poderia discernir parte do rosto redondo. Pintado na parte superior do nariz para cima até a testa de azul marinho e vermelho da ponta desse mesmo nariz indo cobrir todo o rosto ainda o queixo. Esse jovem índio, em sua vaidade, usava um colar parecido com o do mais velho, mas trazia também caído no meio do tórax uma pequena faixa de tons amarelados e vermelhos com dois pequenos detalhes em verde, que realçavam a franja branca do final. Por fim, em seu dorso podíamos divisar pinturas continua nos dois lados do corpo”.
Ufa, para que essa descrição extensa? Quantos detalhes. Guaci adora essas descrições extensas típicas da literatura do período do Romantismo. Bem, deixa prá lá. Mas o estranho nisso tudo, é que esses não trouxeram nenhuma escrita consigo. Nem nos braços e pernas ou outra parte. Guaci se perguntava se esses visitantes eram analfabetos, ou se usavam alguma tinta invisível em seus escritos. Aproximou-se do mais velho, e enalteceu o seu belo cocar, a sua expressão de chefe valente e a capinha de telefone celular confeccionada com pele de jaguatirica. O chefe respondeu-lhe que estavam ali para falar com seu pai. Guaci então perguntou se eles tinham alguma mensagem especial para entregar. Talvez uma carta de algum conhecido ou um recado de e-mail. O velho chefe sorriu para o mais jovem que o acompanhava e disse que trazia apenas algumas palavras escritas para um velho amigo de muitos anos de caçada. E que entregaria apenas a ele. Gaci diante dessa recusa educada em dar-lhe, a saber, de imediato o conteúdo da mensagem, os levou para a oca de seu pai. Pegou o caminho da lanchonete de Joey Taylor, um americano que vivia ali há muitos anos. Quando passaram pelo estabelecimento de estilo indígena, sentiu-se logo um cheiro forte de anta assada, o branco magro, de óculos escuros de surfista estava tratando alguns peixes, perto dele umas latinhas de refrigerante coca-cola, no alto a sua direita uma carcaça de macaco temperada com ervas esperava a vez de ir para o fogo. Continuando o seu caminho e passaram pela oca da índia gorda, que esbravejava com o marido por causa de uma tevê queimada. Andaram alguns passos e chegaram à oca do velho “Mão Pelada”. Pelo menos era assim que todos chamavam o pai de Guaci. Eles o encontraram do lado de fora se balançando em uma rede de dormir. No reencontro dos amigos, houve muitos risos e afagos. Mas na hora da conversa os dois velhos se afastaram dos mais jovens e foi nesse momento que o visitante levantou a planta do pé esquerdo e então o velho “Mão Pelada” ficou pálido, espremeu os olhos, mordeu os lábios, coçou a cabeça e chamou o filho com um aceno de mão. O filho se aproximou e leu uma pequena mensagem na sola do pé daquele visitador onde estava escrito com a letra minúscula e simples de uma semi-alfabetizada, uma mensagem que parecia ter sido ditada por alguém mais inteligente do que ela. A mensagem era de uma mulher:
“A mensagem começava com uma saudação inaudita, e continuava com lamentações incipientes, de como o velho “Mão Pelada” sabia de que a muito eles não se comunicavam, continuava com uma lamúria, segundo o entendimento dela, de que por uma decisão do deus tupã ela encontrava-se doente e fraca. Já não conseguia colher as frutas. Já não conseguia cozinhar o biju. Já não conseguia fazer curumim. Então podemos perceber como estava imprestável para a vida. Já que é assim, esperava que ele não tivesse esquecido sua promessa de cuidar da filha deles que já era uma mulher feita, uma vez que a filha não tinha marido, não tinha ninguém. Nesses termos a velha queria informar que a filha já se encontrava a caminho e que queria que ele agisse como um pai, dando-lhe o abrigo pretendido. Assim queria a velha do Biju”.
O velho “Mão Pelada” torceu a cara, e pediu logo um “rapaz expresso” para mandar uma mensagem rápida e sucinta. Mandou chamar o pequeno Jaci e pediu para o filho escrever nas costas do mensageiro com letras grandes, de fonte quatorze, aproximadamente, para que todos tomassem ciência de sua decisão. Em uma escrita ligeira de bela caligrafia de Guaci, o velho ditou com as palavras aproximadas a que ele pretendia, e que o filho tratou de dar um tom menos coloquial e uma versão mais elegante:
“O velho disse para sua ex- consorte que realmente, a muito que não se comunicavam. Sabia que a pobre Velha do Biju sofria, e que a decisão do deus tupã não deveria ser questionada. Entretanto, ironicamente, ele não esperava encontrar a sua velha ex-mulher, padecendo do mal da malaria. E que esse mal viesse acompanhado do tão conhecido sintoma do delírio. Sem duvida o que lhe causava espanto, eram as conseqüências graves que os tremores originados por um ser tão diminuto como um mosquito, poderiam acarretar a mente de uma velha. Diante dessa enfermidade, desculpou-a por fazer um pedido tão eivado de absurdos, desconsiderando o tal pedido de receber “sua filha” em sua humilde morada, deixando assim por uma questão de educação, que o vento levasse as pueris palavras dela. Não se preocupou e perdoava essa falha, de coração. Assim desejava a ela boa sorte e lembrou-a que há muito tempo, há muito tempo mesmo, não se viam. O que era mais um sinal de que ele não tinha maiores compromissos a cumprir com essa senhora. Mas, repetia, por uma questão de bons modos, perdoava tamanho desvario de uma senhora tão idosa”.      
O velho tratou de despachar logo o “menino expresso”, e foram à lanchonete do Joey.
No começo da noite o mensageiro retornou a aldeia trazendo uma inesperada resposta, escrita na bochecha direita que descia vertiginosamente pelo pescoço, e que Guaci leu para o pai. Entre outras coisas dizia:
“Ela afirmava categoricamente que, o ex-marido era um inconseqüente. E que se a muito ele não fora devorado por uma onça pintada, deveria dar graças às preces dela e a vontade de tupã. Doravante as esquisitices e indisposição dele para fazer filhos, a muito custo, fizeram esta a que ele renegava. Compreendia que, ele agora, deveria estar mais senil e decrépito, e que com toda certeza constituiria para a pobre mulher que agora era sua esposa um fardo inútil e sem vida. E que talvez, por isso, a sua memória estivesse igualmente afetada, após tantos anos de preguiça disfarçada de alguma doença imaginaria. Porém não devia esquecer o fato de que na tenra juventude, o pai dela motivado por uma compaixão desmedida o tirou da mata virgem perto da aldeia de onde eles moravam, e que ele naquela ocasião, o outrora jovem “Mão Pelada” se encontrava em tal situação de penúria, que estava a ponto de se acasalar com as fêmeas de macacos aranha. De todo modo, depois dessa triste passagem de sua vida, deveria se lembrar que não recusou do biju que ela fazia, a ponto de se empanturrar, e que diante de tudo isso, e de se esperar um pouco de responsabilidade mesmo de alguém tão afeito no passado a enganar pobres meninas na beira do rio. Uma vez que, a sua memória se encontre mais clara e renovada, queria lhe informar que sua filha chegaria a sua aldeia amanhã. E que agradeceria se mandasse dar uma limpeza na oca e colocassem um pouco de água fresca no grande pote”.
Ele o velho não podia acreditar no que lhe era dito. Procurou a sua arma de guerra com os olhos, com pensamentos obscuros. A insistência dessa velha estava lhe causando coceiras no corpo, a tal ponto que, mandou a sua mulher lhe preparar um chá de auyasca para que, talvez o seu subconsciente lhe revelasse o porquê de tantos aborrecimentos. Diante dessa situação incomum, pegou o “rapaz expresso” pela orelha, e fez Guaci escrever na perna direita do rapaz e remeter uma resposta apropriada e definitiva. O conteúdo de tão inusitada resposta era a seguinte:
“Começou de maneira impessoal, chamando-a de minha senhora. E expos que embora em um passado remoto tivessem se conhecido, nunca ficou claro para ele o papel que lhe cabia nesse relacionamento. Uma vez que, era de amplo conhecimento a disposição dessa mulher devassa, para com os viajantes de todos os tipos e gêneros. Ou por acaso ela estava esquecida do homem branco que vinha no barco grande, de que ele adorava provar do seu biju? Sem falar nas imprudentes escapadas para colher ervas e outros congêneres, no simples propósito de esconder o seu comercio ilícito com algum ianomâmi mais gordo da aldeia vizinha. Entrementes a paciência e recato desse ex marido que falava. Ficou lógico para ele que não era merecedor de tal sina, fato esse que o levou a largá-la. Diante desse pressuposto, o velho “Mão Pelada” preferia servir de alimentos para as piranhas a concordar com tal desatino, dava por encerrada essa discussão infrutífera, e informava a mal afamada Velha do Biju, que a menos que retomasse a razão, informaria as autoridades competentes, que uma canibal sobrevivente de tempos idos, se encontrava a plena atividade na região. Diante disso, cria que estavam conversados, e terminava a carta com os dizeres ‘do Seu agora inimigo mortal’”.
“Mão Pelada” e Guaci achavam que com essas afirmativas, tudo estava resolvido, e foram dormir. Na madrugada um rapaz quase morto, chega de retorno a aldeia. Trazia nas mãos uma capivara pelada onde se via uma mensagem infame, pois uma das maiores demonstrações de repulsa que algum índio culto poderia receber era o de uma mensagem escrita na pele acre e disforme de uma capivara nova. Independente do conteúdo de tal mensagem, pois não haveria maior insanidade do que, mandar um bicho desse desnudo de pêlos, atordoado, e ainda por cima escrito de cabo a rabo como se fosse um índio. Toda a tribo se sentiu nauseada. Era como se não houvesse sobre a terra mais nenhum tipo de decência. E o pior de tudo. Guaci constatou que a leitura da dita mensagem estava simplesmente inacessível, não se lia nem uma vogal. A pele do bicho não serviria nem para escrever em leitura braile. Um cego teria nojo de tatear essa coisa, e nesse meio tempo, poderia sentir fome e sucumbir à tentação de assar o pobre animal antes de ler a carta. Então o Velho “Mão Pelada”, diante de tanta falta de compostura, de tanta incivilidade, teve um colapso psíquico, e meramente foi se agachando lentamente e ficou de cócoras, silenciando por messes a fio, em estado de choque.
Como anunciado, na manhã seguinte chegou à aldeia uma mulher baixinha e gordinha, quase nua e de longos cabelos negros. Ela trazia no ombro um filhote assustado de mico leão dourado, e a tiracolo dois curumins barulhentos. Toda a aldeia foi receber aquela que fora a razão de tanta falta de juízo. Apesar de toda balburdia criada, Guaci recebeu a irmã de braços abertos. Constatou que um dos curumins se parecia com ele, que a irmã era uma doce criatura. Mas o que realmente sensibilizou Guaci foi um lindo texto escrevinhado na barriga da irmã. Um trecho do livro “a jangada de pedra” do escritor português José Saramago, e que talvez servisse para sintetizar todos aqueles acontecimentos:
“cada um de nós vê o mundo com os olhos que tem, e os olhos vêem o que querem, os olhos fazem a diversidade do mundo e fabricam as maravilhas, ainda que sejam de pedra, e as altas proas, ainda que sejam de ilusão”.
             
   













   
              
    










Do Pensamento Sentido

A rua está diferente. Que arvore é aquela? E aquele gordo de óculos? Não quero ser chato, mas que cor horrível. Quem pintou a casa assim? Eu disse que o verde musgo era mais bonito, que daria uma majestade a casa! Só pode ser a Janaina. Ela gosta dessas cores berrantes. Lá vem o gordo abrir a porta do carro. Afinal, quem é esse?
Depois de nove anos, três meses e vinte e dois dias, Frasão voltava para a casa que morara e criara seus seis filhos. É verdade que esse retorno não era programado, afinal, fazia muito tempo que havia se separado de Janaina. Gostava da ex-mulher. Bem ele gostava um pouquinho. Mas achava a comida dela boa. Serio. Afinal ele era professor de filosofia. E embora ele houvesse procurado a verdade das coisas nos compêndios e livros, no conhecimento, ele não pretendia ter a pureza, mas procurara a verdade apenas. Ele é ou era, um mestre em semântica. Mas a informação mais visceral sobre ele, era a de que estava doente. O coração estava falhando. Já tivera três enfartes! Adorava churrasco! Era um carnívoro convicto. E esse talvez tenha sido a razão de sua enfermidade. Embora ele achasse isso um exagero. Para ele a principal razão fora apenas a sua vida corrida e estafante.
De quem foi à idéia de mandá-lo de volta para a casa grande na capital? Não sabia. Mas desconfiava de alguém. Só podia ter sido o Flávio o seu filho do meio. Mas que idiota! Agora teria que agüentar o mau gosto de Janaina. A torta de carne de sol que ela cismava em fazer todas as terças e quintas feiras. Essa obsessão culinária deve ser uma espécie de compulsão parental, herdada da mãe dela. Um sinal de debilidade mental. E tudo conspirava para que ele fizesse a pergunta outra vez: mas quem é esse gordo de óculos?   
“Escuta com sua vontade e duvida com sua liberdade.” Dizia um antigo colega de cátedra. Eu ouvi meu amigo. E agora onde estou? Tive a liberdade de duvidar. De que eu não seria capaz de cuidar-me sozinho. Por telefone, fiz um simples comentário a minha filha Janine e pronto. Logo arquitetaram um plano funesto. Feito nos mínimos detalhes. Depois eu escutei com minha vontade os argumentos dos meus outros filhos! Ela elaborou o teorema. Estou falando de minha ex-esposa. Ela disse que seria mais econômico, pratico que eu voltasse para casa, que eu seria mais bem cuidado e etc.. O problema é que não conheço mais essa mulher! Para mim ela é um enigma grego amarrado em um nó gótico. Mas eu não quero ser repetitivo, perdoem-me, essa minha indiscrição, mas essa minha curiosidade está me matando. A pergunta fundamental é: quem é esse gordo?

 Ainda não via o conjunto completo. Mas Frazão estava mais calmo. Ele estava sentado no sofá da casa. Todos os filhos e netos em volta. Como mariposas atraídas pela luz de uma vela já no acabamento da cera. Estava apreciando uma replica ampliada de um quadro de Odilon Redon: “Pandora”, onde uma imagem de silueta, que parecia ser uma mulher, segurava alguma coisa. Uma caixa. Tudo seria perfeito se não fosse o gordo. Esse sujeito estava sentado na poltrona no lado oposto da grande sala, e o olhava fixamente por trás daqueles óculos. De vez em quando Janaina passava por perto dele e dava um beijo um afago na cabeça do homem. “mas que situação!” cogita Frasão em sua fisionomia impassível:
-ei Flavio, me da um copo de vinho!
-que é isso pai. Acabou de tomar o medicamento ainda há pouco!
-então me dá a minha caixa de remédios.
-para que?
-para eu acabar logo com essa agonia!
O gordo se aproxima:
- oi professor Frasão. Meu nome é Marcos Vehaüfen. O companheiro de Janaina. Quero dar-lhe as boas vindas em seu retorno a sua casa. O senhor me honra muito com sua presença.
-um homem educado!
-permita-me dizer que sou mestre em historia oriental e doutor em sociologia pela universidade de Madrid. Li os seus artigos sobre semântica e achei-os brilhantes!
-é mesmo? Sinto-me lisonjeado. Marcos não é?
-o que o ilustre professor precisar me coloco a disposição! Aceita um suco de kiwi?
-bem. Ainda tem vinho? Pode me trazer uma taça?
-imediatamente senhor.
“mas que distinta pessoa!” surpreendera-se Frasão.

Todos os gozos e delicias estavam dispostos e arrumados naquela mesa de jantar. De repente coisas que ele havia esquecido, reapareceram ali naquele momento: o sorriso gostoso de Janine, as piadas picantes de seu filho Luiz, a brincadeira dos netos, a maneira que seus meninos se tratavam, com amor e sinceridade. Ate as lentidões de Flavio nesse momento lhe parecia às pausas de um sábio a procura da iluminação. A muito que procurava esse sentido, essa plenitude que sentia, mas o curioso é que sempre a procurou no mundo das idéias, nas profundezas do intelecto. No entanto naquela simples imagem, no aconchego da família, naquela interação amorosa parecia que havia feito uma importante descoberta.  Pode-se dizer que durante quase toda a sua vida, ele saiu à procura de um sentido para as coisas, os porquês, as essências filosóficas. Tudo fez para encontra esse sentido, até angustiasse, até deprimisse. Mas ali naquele momento. No seio farto de sua família, parecia-lhe que encontrara enfim o sentido da vida e das coisas.  O cântaro das águas esquecidas. A margem que faltava na sua praia perdida. Apenas a verdade e a sina. Na melhor das frases, a verdade pura.












Vida Suja

Os carros estavam todos juntos como murros impenetráveis. Qualquer sombra era um vulto, e qualquer vulto era aquele homem. Os olhos do guarda ardiam como tochas de fogo, e seu suor escorriam pela mão que carregava a pistola. Entre os carros, pessoas desciam despreocupadas, ignorantes do perigo iminente. Passaram-se alguns minutos até que ele o visse. O malandro estava escondido embaixo de uma caminhonete. Olhos esbugalhados, o revolver em punho pronto para suprimir mais uma vida.
O malandro quis disfarçar. Escondeu a arma. Tentou fugir com a fumaça dos carros. Mas o seu movimento foi detectado. Sentiu a barriga pegar fogo. A vista escurecendo. E só deu tempo de ver o guarda, a forma encardida se aproximando, flutuando como um anjo da morte. E então ele sentiu o seu corpo rasgar como um envelope, e de dentro desse envelope saiu uma longa “folha corrida”. Caíram letras e palavras. Pedaços de histórias. Caiu uma flor do chapéu de uma velha senhora espancada. Caiu um sorriso de menina, apagado na hora da morte. Caiu um anel de noivado que foi seqüestrado e não roubado, como pensam alguns. Caiu uma frase de pedido de clemência de um taxista. Até os rabiscos de um poema escrito nas paredes de uma cela em Osasco. O facínora deu o ultimo suspiro.  E então caiu ao chão toda uma história suja de sangue.







O Jardim de Miosótis

A pobre velha via uma casa linda que simbolizava toda a sensação de liberdade que sentia: era branca e rosa, tinha amplas janelas, um jardim de miosótis, de cheiro resplandecente, tijolos no piso de entrada. Uma cerca branca, dessas de madeira, e do lado direito da parede externa uma grande arvore frondosa. Sentia-se livre e rejuvenescida como aquela casa. Porque a havia comprado? A sim! Agora lembrava! Ela foi salva por um super herói. Tudo começou em outro lugar, em um dia fatídico. Na décima oitava surra que levara do marido. Quando o seu braço esquerdo estava quase quebrado. Quando o seu baço estava inchado. Quando os hematomas eram tantos que pareciam que procriavam, ela foi salva. Ele chegou à meia noite. No silencio dos pinhais. Ela não sabe como ele entrou na casa velha. Mas o viu. Alto e forte. Louro de olhos azuis. De capa e tudo. Um típico herói americano. E então ele entrou no quarto do monstro. O monstro dormia. Roncava bêbedo como se nunca se tivesse alcoolizado. Com uma barba rala e desigual. Roncando estridentemente, não percebeu o primeiro golpe de machado que quase decepou sua cabeça. Depois o herói foi ao quarto dela. Sorriu. E disse que o serviço estava pronto. Acabado. E ela foi ao quarto do falecido marido. E viu. Que estrago! E eu que vou limpar tudo isso? A velhinha aceitou essa tarefa sanguinolenta, mas decidiu deixar para amanhã. Afinal ela estava com o braço quase quebrado e doía muito. Depois limparia tudo. Pois ele a havia salvado. Havia lhe dado a chance de outra vida.
No outro dia, de manhã bem cedo, como o sangue havia descido as escadas e dado na rua, os vizinhos chamaram a policia. Ela foi interrogada. Mas que herói perguntou irritado o delegado. Essa senhora é louca! Onde já se viu? Um super herói? Que invenção absurda para esconder um assassinato, pensou as pessoas assustadas que haviam visto a cena dantesca do quarto. A pobre velhinha virou uma noticia macabra no telejornal das vinte horas. Ela foi presa. E depois de algum tempo a levaram a um lugar. Era grande. De paredes brancas. Todos eram brancos mesmo os negros. Só tinha gente esquisita. Gente que babava. Gente que subia pelas paredes como moscas. Tinha um que gostava de comer na privada. Mas a velha ficou sozinha. Não era como eles!
Tempos depois veio um senhor e a olhou bem de perto. E decidiu que ela estava bem. Que havia esquecido seu herói. Que isso tinha sido há muito tempo. E então a deixaram ir.
Na noite de São Pedro ela chegou à casa nova. Aquela do começo de nossa historia. E como era a casa de seus sonhos e ela estava livre, pensou em chamar o seu herói para morar com ela. Mas onde ele estava? Havia sumido da face da terra. Possivelmente estava salvando outras velhas senhoras que eram torturadas por algum monstro. A velhinha sentou-se em sua cadeira de balanço. Em frente a sua casa que era branca e rosa, tinha amplas janelas, um jardim de miosótis, de cheiro resplandecente, tijolos no piso de entrada. Uma cerca branca, dessas de madeira, e do lado direito da parede externa uma grande arvore frondosa. E desfaleceu esperando o seu herói.








O Anjo no Shopping

Ele gostava das crianças. Sentia uma atração especial por vestidos rosa, lacinhos, sapatinhos e denguinhos. Gostava de ir a aquele lugar, de ver as lojas, de lanchar no espaço gastronômico, e procurava os lugares onde elas adoravam ficar. Ele era um homem doente, já maduro, cabeludo e cheio, com alguns quilos a mais. Isso o incomodava, ele se achava antiestético. Talvez isso fosse uma das causas que o fazia gostar tanto das peles jovens. Seus olhos ávidos devoravam as imagens daqueles pequeninos, os desejos densos e carregados de impurezas daquele homem, frutavam ao seu rosto um jeito amaldiçoado. Com um nervosismo incontido passou uma língua úmida e pegajosa nos lábios. No transe psicossomático, o seu corpo dava leves tremores e repuxões, enquanto uma garçonete lhe servia mais um sanduiche. Abriu um caderninho e começou a anotar alguns dados. Mas que território de busca! Ele estava feliz, e num gesto automático, puxava um cacho de cabelos grisalhos. Levantou a cabeça e os seus olhos, logo adiante descobria uma área de lazer infantil, que lhe oferecia um belo espaço com brinquedos, doces, balões coloridos de gás e palhaços, uma visão digna de uma fotografia eterna. 
Quando ele cria que estava no paraíso. Fez-se a luz. Num momento crucial, de ordenamento divino. O anjo vingador surgiu. O homem doente estava sentado e comia um sanduiche, mas viu aquela forma luminosa de longe, descendo na escada rolante. “Como poderia ser? Até ali ele o perseguia, mas que desgraçado!”-pensou o homem. A forma luminosa se aproximou lentamente, invisível para as outras pessoas. Ele tentou se esconder por trás de um boné e óculos escuros. Mas foi em vão. Ao chegar perto da mesa a luz, aos olhos daquele homem indecente, se transformou em um senhor de ternos claros e camisa branca, esse estranho que chegou assim de modo tão manso, calmamente sentou-se junto do homem de cabelos longos, agora disfarçado:
-mas você está aqui de novo, incomodando as criancinhas! Será que você não vai aprender? Eu tinha lhe avisado, lembra? Dessa vez teremos que ser mais severos com você.
-mas eu não estou fazendo nada, eu estou comendo um sanduiche.
-e também está anotando no seu caderninho as características e os hábitos dessas crianças, o que elas gostam ou não. Acertei?
-não é nada disso...
-não adianta nos enganar. Conhecemos o seu “modus operandi”. Sabemos de todas as suas perversões e pesadelos. Você simplesmente não consegue se controlar, não é mesmo?
-mas eu já disse que não estava fazendo nada!
-infelizmente para você, estivemos na sua casa antes de vir aqui, e encontramos a sua coleção de vídeos e fotos. Os endereços e anotações sobre as crianças do bairro. É dessa vez pegamos você.
Diante dessas provas comprometedoras, o homem doente esboçou um esgar contido. Dois policiais se aproximaram e agarraram o teimoso pelos braços. Ele ainda tentou argumentar, mas aquele senhor era implacável. Ele não estava ali à toa, a sua missão divina era a de prender pessoas como aquelas. Além do distintivo, ele tinha a autoridade e a moral. Parecia que ele tinha sido enviado pelos céus para cumprir aquela missão. 






Ideograma do Ser

Todos naquela favela o chamavam de Baiacu, porque era pequeno e tinha uma barriga protuberante, inchada pela desnutrição. Para alguns, esse perdido, era o conjunto de tudo que era ruim. A verdade é que esse atrapalhado, esse pedaço de osso, esse avejão de gente, tinha família. Ele na tenra infância tinha sido adotado por uma velha leprosa. Tinha sido levado para “o buraco”. Um lugar intermediário entre um barraco e um poço abandonado. Lá. Na beira de um morro. Baiacu nunca tinha ligado muito para isso. Pelo menos era o que dizia para os outros. A sua mãe era a velha Miada. Foi a que o levou para casa, quando sua mãe biológica, uma desnaturada que era uma prostituta o havia recusado. A velha havia contado uma estória bonita. A de que ele bebê tinha sido deixado por um pássaro dourado. Em uma noite sem lua. Mas quando baiacu fez doze anos, e ela soube que estava morrendo, contou a verdade a ele.
O menino queria saber por que a mãe dele, a verdadeira, o tinha abandonado. Será que ela tinha sido obrigada a dá-lo por fome? Por causa de ameaças de bandidos? Tinha sido por causa de alguma doença? Ele procurava entender as razões que a levaram a fazer isso. Todavia a velha foi curta e grossa. Contou que ela era uma ex-prostituta que tinha entregado Baiacu a má sorte por causa de um golpe. Um golpe de mestre. Essa bandida, tinha se casado com um homem rico. Um homem que já naquela época era um idoso. Ela por algum passe de mágica, de um ardil qualquer, conseguira levá-lo ao altar. E para isso tinha que se livrar da criança. A velha com lagrimas nos olhos, contava essa desgraça, em um pranto silencioso e inútil. A velha Miada morreu dez dias depois. Conseguiu-se um caixão feito de ripas, e a única mãe que Baiacu havia conhecido foi enterrada quase como uma indigente. Em um pedaço afastado do cemitério. Com uma cruz de madeira por cima.
Baiacu demorou-se pouco no barraco. Depois do enterro, foi morar na rua. Debaixo de uma ponte. A velha Miada havia deixado de herança, cem reais e o endereço da mãe desnaturada, como um ultimo gesto de dignidade humana. Diante dessa informação, a esperança se reacendeu como uma brasa no coração do menino. Então ele tomou uma decisão. Vai à procura de sua mãe. A sua expectativa é a de que ela, diante do filho perdido, recobre a razão, que se revele uma verdadeira jóia de bondade e compaixão. Ele espera mais que tudo que ela, aquela que o abandonou, que o ame, apesar de todas as desgraças.
Se usarmos um signo humano, para a nossa representação da historia de Baiacu, logo surge um código pessoal e intransferível, que nos obriga e nos fere. Impede-nos de encontrar uma explicação plausível, para esse menino, esse desgraçado. Não lhe permite uma saída honrosa para essa historia tão cheia de desencontros. Alguns podem retrucar que assim é a vida, entretanto isso, a sorte desse menino, nos queima como fogo em ira. Cega é nossa visão, somos sem critérios, ou procuramos critérios na diferenciação, mistérios sem o haverem? Na nossa concepção de narrativa dessa estória? Será que Baiacu procura nuvens, água vaporosa entre dedos cansados, disformes na repetição, na infundada capacidade de sofrimento? Sabe-se lá.
Depois de muita pesquisa, descobre que sua mãe casou-se com um milionário. Isso aconteceu quando finalmente, depois de dias vagando, na chuva, no sol escaldante, depois de ter sido posto para correr varias vezes por pessoas incomodadas por sua aparência feia e suja. Ele chega a seu destino, à frente a uma mansão, no bairro mais nobre da cidade. Ele vê o paraíso perdido. Três carros de luxo na garagem. Um jardim de sonhos. A limpeza do lugar! Ele nunca podia imaginar que existisse lugar tão limpo sobre a face da terra. Chega ao portão de ferro cheio de arabescos, e com suas pequenas mãos se pendura nas grades. Os olhos grandes. O corpo magro e a barriga proeminente.
Um mulato vestido com um avental e luvas verdes de plástico, o olha curioso. “O que quer meu filho?”. Baiacu animado responde. “quero ver a minha mãe!” o homem de avental, ri e volta-se a sua tarefa do dia. Como Baiacu não conseguisse ver sua mãe, uma vez que todos achavam aquilo um disparate, ele decide entrar a força. Na mesma noite espera todos dormirem e entra na mansão. De mansinho. Como um profissional. Antes ele havia gasto os seus últimos reais na compra de uma camisa e uma bermuda. Tinha tomado um banho e penteado o cabelo. Afinal sua mãe não podia vê-lo sujo e de roupas rasgadas, como estava. Ele penetra no hall de entrada e adentra a grande sala estilo vitoriano. A riqueza a opulência do ambiente quase lhe causa um tumor no cérebro. Era uma coisa além de sua compreensão. Como poderiam existir coisas assim? A sua mãe, então, devia ser quase como a virgem Maria. Uma espécie de deusa! O seu espanto quase acaba com sua razão.
Do fundo da sala vem um som de pigarro. E depois uma tosse asmática. E então ele a vê. Sentada em uma poltrona vermelha de desenhos de ouro, uma mulher baixinha, cafona e bêbada o olha. Uma bêbada inveterada promiscua e egoísta.
-o que você está fazendo aqui moleque? Não foi isso que eu pedi. Eu quero é um jovem bonito e viril. E então? Pelo jeito vai ter que ser você mesmo. Pode tirar a roupa, vamos ver o que você tem!
-a senhora não está me reconhecendo?
-qual é menino! Por acaso nos já dormimos juntos? Que porre! Essa eu não me lembro!
-eu sou o seu filho perdido. Aquele que você deixou com a velha Miada!
-a velha já morreu há muito tempo. E que negocio é esse de filho? Eu mandei aquela desgraçada afogar o filhote de gato. Ela me disse que fez o serviço, eu paguei.
-mas mãe sou eu! O seu filho! Pode me chamar de Baiacu.
-que sobrenome é esse moleque? Eu já ouvi falar de Coelho, Falcão, até de Pardal, mas Baiacu? Que mau gosto miserável!
-que barulho é esse lá em cima?
-ah, deve ser aquele velho inútil. Você sabia que eu prendi o maldito? Eu mantenho o meu marido, aquele velho preso a uma cadeira de rodas, e isolado em um quarto. Não sou genial?
A mulher bêbada súbito parou de falar. E num jorro de vomito, caiu sentada no chão. De pernas abertas para o ar. Nesse frenesi etílico, estrebuchou e apagou ali mesmo.
Agora Baiacu havia tomado um banho de realidade. Essa mulher era a sua mãe? Essa criatura que mais parecia às putas que ele cansava de ver nas sarjetas e nas vielas? Nem todos os tesouros do mundo embelezariam essa mulher. Pelo contrario. A baixeza moral dela escureceria qualquer coisa. Rebaixaria tudo e todos aos res. do chão. O menino decidiu ir embora dali, o mais rápido possível. Mãe? Aquilo era o demônio. Mas a sua consciência o empurrava para o andar de cima. O idoso! Ele sobe a soberba escadaria. Parece uma eternidade a subida. Mas entre os muitos quartos, chega a um que esta com a porta escancarada. Lá dentro está o idoso de camisola de dormir, sentado em sua cadeira de rodas. Baiacu entra no quarto e resgata o idoso. O menino magro com sua barriga inchada empurra a cadeira devagar, com cuidado, escada abaixo. No meio da imensa escadaria, a mulher meio bêbada os espera.
-o que é isso moleque? Esse pedaço de carne é meu. Você quer levar o meu cofrinho é?
-eu não dou! Você é uma puta ouviu? Não vale nada!
-mas que novidade! Me diz algo que eu não sei!
A mulher segura na cadeira de rodas e Baiacu também, e travam um cabo de guerra com o pobre idoso. Súbito a mãe desnaturada escapa as mãos. Nessa tentativa de impedir a fuga de seu cofrinho, ela rola da escadaria abaixo e quebra o pescoço!Lá fora o menino empurra o carro de rodas por entre as avenidas e ruas, com a adrenalina no sangue, até cansar.
Surpreendentemente, depois de horas, eles estão no centro da cidade. Baiacu limpa o suor do rosto do velhinho.
-agora o senhor está a salvo! Aquela vadia nunca mais vai maltratar o senhor. O senhor está bem?
-quem é você?
-hora, o menino que te salvou! Das mãos da bruxa que te mantinha preso naquela casa grande! O senhor não se lembra?
-você é o meu seqüestrador? Quem é você?
O idoso sofria de amnésia e não se lembra que baiacu o tenha salvado. Baiacu em seu intimo tremeu de medo. Ele poderia ser acusado de seqüestro. Nesse momento o menino sentiu uma profunda desilusão da vida, estava desorientado, aturdido, como um tambor oco, não suportava mais essa desilusão. Ele foge, deixa o idoso no centro da cidade, naquela cadeira de rodas antiquada! O dia vai morrendo e pessoas esquisitas se aproximam. Como cães atrás de alguma carniça. Logo é depenado. Primeiro levam o bem mais valioso: a cadeira de rodas. Depois levam a camisola de dormir. Até os óculos. O idoso aleijado que outrora tinha sido um grande homem da alta sociedade, se encontra agora jogado ao chão próximo de latas de lixo e montes de coisas velhas. O tempo passa. Cai uma luz no horizonte. E logo nos persegue a noite. Ainda encontramos o velho ali, na penumbra, observando. Gaguejando no escuro uma maldição.   







A Calçada e o Labirinto

Alguns amigos gostariam que eu escrevesse continhos tipo: batatinha quando nasce se esparrama pelo chão...mas infelizmente terá que ser este mesmo.. Que abre assim... Sereno, mensagens e trafego. O fidalgo passeio das feras. O centro das vísceras. O conteúdo maldito. O retraimento de vozes. É essa a rotina na vida dos irmãos Santos. Magros, dentes pretos, olhos em eterno sono. Nossa historia se passa nas ruas perto do Centro de São Paulo. As crianças malditas. Os trombadinhas. E dessa maneira pouco lisonjeira que são tratadas pela maioria da população. É na noite escura que as coisas ruins geralmente acontecem.  Às vezes dentro de cobertores de jornais. Às vezes é banho de chuva. E então, onde está a pedra? Perguntam-se ansiosos.  A pedra mágica, O elixir amarelo, Para lavá-los da realidade? De vez em quando o menor o de canelas finas rouba alguma coisa de alguém. Ele tem essa habilidade. Ele tem que conseguir a pedra. O elixir. Quando caia a noite a coisa é pior. O cheiro das feras. Elas rondavam a Praça da Sé. O manancial sinistro, onde os irmãos e outros meninos dormem juntos, apavorados, como um bolo, juntos. Os irmãos não gostam da noite, embora seja nesses horários que procuram se movimentar. Mas existe o perigo. Presas de pavor eles e as coisas permanecerão, até a manhã seguinte. Embora eles durmam mais de dia do que de noite. Eles intimamente preferem o sol. Quando tem mais gente é difícil alguém bater neles. Ninguém aceita que batam em crianças.
O mistério do sereno. Onde Os Santos procuram nessa noite de sereno. Não conseguem achar “o gato de botas”. Esse é o cara que geralmente vai buscar o elixir. Se ele não vier como é que vai ser? É impossível viver sem! Nessa noite souberam que “o gato de botas” foi pra vala. Ele deu bobeira. Não fez a entrega correta ou escondeu algo de alguém. Só sabiam que a companheira dele uma velha de vinte e dois anos havia assumido “o negocio”. Então cadê ela? A gente precisa agora! Cidade, escadas e cúmulos limbos. O mais velho dos irmãos corre. Pessoas estão atrás dele. Ele conseguiu pegar uma bolsa, de uma bruxa pintada que desceu de uma carruagem sem cavalos. Na rua perto dos correios, perto daquele hospital famoso. Ao chegar perto do irmão próximo ao fosso onde eles às vezes se escondiam, ele conta. ”Corri desesperado cá dentro”. A bruxa parecia que estava enfeitiçada, gritava, apontava para o menino, como se quisesse transformá-lo em rocha. Eles se sentem aliviados, estão agora deitados na calçada da pedra do sono. Após o elixir do dia. “É tão pouco”, reclamam “aonde tem mais”? Os corpos deles tremem pelo efeito da droga. Um menino se aproxima deles e conta que o velho Joaquim foi queimado vivo por uns homens que estavam bêbados. Ele disse que viu o velho pegando fogo e gostou do brilho que ficou no ar. Mas o velho ficou todo queimado, como um churrasco daqueles que “o baiano” vendia. E o cheiro! Que bosta! Nessa noite na cabeça infantil daquele menino, o macabro casou-se com o sublime.
Um dia o menor dos irmãos estava na praça à tarde, sentado comendo um pedaço de sanduiche, que uma garota jogou no lixo. O pequeno viu as feras. Arrepiou-se todo. Eles chegaram. Vieram em três viaturas pretas da Guarnição de Choque. “agora vai ter bala” pensou. Mas eles só queriam o “cafezinho” da banca de bicho. Qual será que foi o bicho de hoje? Achava que talvez jogasse um dia. Ia jogar na borboleta. Ele a achava esse pequeno inseto com assas bonito . E por que não? Uma borboleta é na verdade uma fada. Ouvira um menino rico dizendo isso para o pai uma vez. Teria uma imagem mais bonitinha? Cambaleando. O mais velho veio ferido. Os joelhos ralados, um olho roxo, sangue nos lábios. Um andar esquisito. O pequenino perguntou, mas o maior ficou calado, aborrecido. Escondeu a brutalidade do que sofrera do irmão menor. Por pura vergonha. Era o final da tarde, o começo da noite. Perto deles, na praça, figuras escuras iam chegando. Carregavam trapos sujos, pedaços de papelão. Rostos quebrados. Curvas nas costas. Uma menina tomada pela pedra ria descontroladamente, levantava o vestido poeirento para os outros, mostrando os seios. Um gordo barbudo, poeirento, veio de mansinho e a agarrou por trás. Todos riram.
A bruma deitada. É esse o nome que davam para aquelas noites. As mais frias do ano. Quando não existia nada que pudesse aquecer os seus corpos. Os irmãos fingindo dormir observavam as indigentes formas. Próximos a eles uma mulher gorda morreu. Simplesmente fechou os olhos. Cansada. Com estomago revolvido, o mais velho vomitou. O pequenino balançou a cabeça desaprovando a fraqueza do outro: “mas que ‘bambi’”.
Um dia um sociólogo, um homem barbudo de óculos de aro redondo, parou na praça e ficou observando, chamou aquelas crianças viciadas, de fadas. As fadas negras. Por causa do sono tecido em seus rostos durante o dia. Pelas noites insones causada pelo crack. Escreveu até um livro com esse titulo, “as fadas negras”. Ele voltou outro dia, com um grupo de pessoas. Elas queriam ajudar. Uma senhora pegou nos dedos do pequenino e começou a chorar. O pequenino pediu algum dinheiro. E ameaçou: “se não der, eu tomo!”
 Todos sabiam que as feras espreitavam o despertar das crianças. Desapareciam às vezes cinco, três, duas crianças por noite. E aquele sociólogo sabia que os representantes do Estado, aqueles que teriam que zelar por essas vidas, às vezes se cansavam dessa tarefa ingrata, e tomavam o caminho mais fácil. Volteando em ócio. Na tênue teia. Eles vêm. Chegam de mansinho. Passam de carros luzes ligadas. Procurando. Procuram os mais desprotegidos. Como nos documentários do mundo animal. Aqueles filhotes que desgarraram do grupo. E quais feras cercando, esperam. Para dar o bote certeiro.









A Cabeça de Leonardo

É Santa Catarina. Na época fria. Um rapaz está no seu quarto deitado. É um inverno nevoento, chuvoso, e parado. Nuvens negras se aproximam da cidade. Nesse cenário, plana uma nuvem sonolenta nos sentimentos de Leonardo. Ela vai lenta e beija a tona d’água. Mesmo essa imagem bucólica, essa figura de linguagem cheia de significados pessoais, nada representa para ele. O fato de existir essa nuvem, que sorrateiramente se assenhora dele suavemente, é que não lhe produz o mesmo efeito estético de uma pessoa normal. Leonardo, por mais que tente nada sente. Nada espera dessa imagem. A sua cabeça produz outras espécies de imagens. Coisas saídas das profundezas. Escuras, curvas, indecentes.
“Faço-me um rio, quer caudaloso, hora calmaria. Eu controlo isso. Às vezes sou tardo no brilho do sol, às vezes uma perfeição amorosa para quem me vê os seres marinhos que quiser.”  
Leonardo disse essas estranhas palavras, sorrindo para a menina da lanchonete. Ele estava calmo, quase extático, mas pensando mil outras coisas. Sua mente nunca parava de maquinar. Arranjar e rearranjar: objetos obscuros e mais obscuros e extravagantes idéias. Ele tinha sua própria luz estranha. E era uma luz a incidir tão rente as idéias que lhe roçava as visões. Ninguém naquela pequena cidade do interior ligava para as suas estranhezas achavam que eram coisas de um adolescente solitário. Algumas pessoas se sentiam incomodadas em sua presença, tinham um sentimento confuso e indefinido, mas decididamente sentiam que era ruim. Que ele não era uma pessoa normal. Uma semana antes do dia da independência, uma menina desapareceu. Alguém disse que ela tinha fugido de casa e ido a Florianópolis. Outros diziam que ela estava escondida na casa de um namorado secreto. Uma menina gorda e sardenta chegou a comentar que ela era uma viciada, que deveria estar morta, que havia sido apagada como uma vela. Mas nesse processo de imaginação e palpites, ninguém havia contado com a casa “da ultima rua”. Ou melhor, das ruínas de uma casa que havia pertencido a um descendente de polacos. A residência havia se incendiado há dez anos. Nesse local afastado, foram encontrados uma blusa rasgada e um anel. A polícia apareceu e ficou um bom tempo por ali. Fato medonho. Passaram o pente fino, e não conseguiram acha mais nada. O fato de que em anos anteriores restos de cães e gatos terem aparecido, naquela região da cidade, com cortes e suturas, e outras coisas estranhas, não serviu para solucionar o mistério. Um amigo de  pernas tortas, havia comentado com Leonardo sobre essa tragédia, ele se resumiu a dizer que ela já estava morta e enterrada. “Mas que evento bizarro!” - disse alguém, é igualzinho aos filmes de assassinos seriais! Outros faziam piadas cruéis e escreveram em seus blogs sobre o assunto. Mas ninguém conseguia atinar sobre a verdade. Dali a um tempo surgiu um boato de que a menina desaparecida, havia surgido, mais magra e feliz em outro Estado do país. Mais ninguém soube dizer o certo.

Leonardo chegou a casa com movimentos febris e imprecisos os olhos faiscantes, ficou nesse estado de animo durante uma hora. Havia trazido um troféu. Depois ele voltou a sua postura original, quieto, olhos parados, sua cabeça totalmente voltada para o seu mundo interior. Um mundo sombrio, enigmático, além da compreensão humana. Ele preferia dissecar pequenos bichinhos. Literalmente. Adorava livros de anatomia, dvd´s de cirurgias e acidentes violentos, quantos mais reais, melhor. Será que algum dia poderia fazer uma cirurgia, mesmo sem ser medico? Isso deveria ser permitido. Pensou bem sobre isso, afinal tinha certeza que conseguiria. Ele tinha o temperamento. A coragem. E com uma vantagem, suas mãos não tremiam. Porque não sentia empatia.
Ele voltou ao seu quarto. Deitou na cama e esboçou um sorriso. Em sua mão direita uma pequena mecha de cabelos claros amarrados por uma fitinha preta, lhe proporcionava a calma que precisava. o seu troféu. Nos noticiários  e na internet, todos perguntavam sobre a solução dessa estranha supressão. Mesmo com os acontecimentos dantescos daquela semana, Leonardo não havia se alterado. Era como se nada houvesse ocorrido. Logo começou a ficar sonolento. Talvez mais tarde retornasse a sorveteria para ver a garçonete bonita. Mas agora estava calmo e absorvido em suas fantasias. Apertou o travesseiro por entre os braços. E dentro de sua mente, voltou-se com suavidade a namorar o leito do rio, com ósculos de mil nuvens soníferas a beijar-lhe a face. E então fechou os olhos e adormeceu tranqüilo. E essas imagens já se foram.