O Chafariz das Almas
Elias Ribaldo agora sóbrio se via em um
aquário silencioso, em sua cabeça, é lógico. Aquela fonte era a certa. A que
foi indicada como a que lhe daria a esperança de transformação. Faria tudo
certo. Cumpriria as suas promessas. Tentaria, ou melhor, faria o ritual, que o
homem havia ensinado. Ali começaria a sua árdua viagem dentro de si mesmo. Ele
se lembrava do curandeiro que lhe aconselhara a procurar uma fonte na cidade
que tinha poderes curativos e mágicos. Foi depois de ter tentado tudo. Os
alcoólicos anônimos as praticas da medicina oriental, a fito terapia, até um
terreiro de umbanda. Quando já estava quase perdendo as esperanças, conheceu
Umbu Cajá, um pajé do alto Solimões. De cocar e tudo. Mas esse índio tinha um
estranho sotaque, que ele não conseguia atinar de onde seria. O pajé havia lhe
dito que apenas uma água pura, proveniente de uma fonte antiga, de leito de um
determinado mineral, teria a força para curá-lo, fazendo com que o seu sangue
reagisse à mudança bioquímica causada pela bebida. Mas ele disse também, que essa
mudança seria espiritual. Dentro do entendimento que Elias tinha com relação a
sua vida. Seria rápido. Com uma resposta simples e direta.
Com essas idéias na cabeça Elias saiu à
procura deste misterioso chafariz. Foi informado que esse monumento tinha sido
construído na Europa no inicio do século dezenove. Que foi transferido para cá
a pedido da família imperial. E foi colocado no centro da cidade. Que anteriormente,
até o inicio do século vinte ele estava incólume, com seus mil e quinhentos
quilos de bronze. Com um desenho harmônico de dois meninos nus segurando uma
jarra, de onde jorrava uma água cristalina. Com o passar dos anos, as reformas
continuas, o replanejamento urbano, a obra do tempo, a ação de ladrões, haviam
transformado essa jóia da técnica de construção de chafarizes, em uma acanhada
torneira. Um lugar público onde se lavava roupas. O único sinal que uma vez existiu
algo assim, indicando o lugar exato do monumento, era uma marca gravada no
cimento, era o de um rouxinol segurando no bico um galho de louro e uma letra
“b”, na folha principal. Pelo menos, era isso que Umbu Cajá havia lhe dito. Mas
pensando bem, como ele havia descoberto tudo isso? Com certeza fazia parte do
repertorio de informações dos pajés do alto Solimões. Ou ele teria conseguido
essa informação por meios sobrenaturais.
Depois
de muita procura e chateações, Elias chegara ao chafariz. Ali estava à pequena torneira,
com o desenho que ele, o pajé, havia indicado. Relembrou a estória que o curandeiro
lhe contou sobre as propriedades da água desse chafariz. Mas como? Ali só via
uma torneira enferrujada que dava a uma banheira e o chão verde de musgos e
sujeira. Em sua visão idílica, havia imaginado outra coisa. Algo mais
grandioso. Mas o que Umbu havia dito mesmo? Sim, “abra a torneira”.
Quando abiu a torneira, ouviu um
barulho de algo querendo escorrer. O barulho persistia, mas não caiu nem uma
gota de água. Ao invés do liquido incolor, Elias começou a sentir uma sensação
na barriga. Logo se transformou em uma sensação suave, mas indescritível. E
isso aumentou até chegar a sua mente. “Onde tombou uma alma jovem”. Ele sentia
isso, pressentia os vultos. E começou a ver imagens, fragrâncias e pensamentos
alheios. O brilho das flores. O jorro da água límpida como um jarro de cristal
em sua mente. Existia magia ali. Algo sem resposta pragmática. A alma do mundo
tinha ali o seu pequeno significado. Elias guardava os seus excessos viciosos
com zelo, agora era momento de se livrar deles. Tencionava beber da água, e
viajar no vinco do mundo, em rebanhos de luz, como haviam descrito para ele.
Essas palavras misteriosas para ele faziam sentido. Queria ir, aonde almas
vacantes iam ao léu. Quando iam ao encontro de suas respostas.
O pajé havia dito também, para que ele
fosse curado era necessário cumprir três desafios que lhe possibilitaria a
liberdade: ter a capacidade de sentir vergonha; ter o direito de chorar; e retribuir
um favor. Para qualquer pessoa isso seria relativamente fácil. Mas não para
ele. Como iria fazer isso? Não sabia por onde começar. Era verdade que por mais
que tentasse jamais havia sentido vergonha ou remorso do que fazia nessa sua
vida tão cheia de percalços. Considerava-se uma pessoa boa normal, mas era
orgulhoso como ninguém. E também, havia levado sua esposa e seus filhos quase a
miséria total, por causa da bebida. Chorar? Nunca havia lembrado desse fato.
Sentia-se incapaz de verter uma lagrima que fosse mesmo aos piores momentos que
sofrera isso não tinha acontecido. E também, que favor era esse que teria que
retribuir? Não conseguia imaginar o que seria.
Com as faculdades proporcionadas pela
fonte mágica, súbito relembra a sua vida da prosperidade à miséria causada pelo
alcoolismo (onde tombou uma alma jovem). Como fizera sofre a mulher que tanto
amava. De como envergonhou os filhos diante da sociedade e da historia da
família. Mas que sina. Como se sentia mal, o pior inseto, diante da
constatação. De repente, uma imagem nítida lhe apareceu diante de seus olhos
interiores. Veio não se sabe de onde, uma lembrança de um dia passado, clara
como uma curta metragem de cinema. Foi um dia após uma recepção regada a vinho
e champanhe, tinha feito o maior escarcéu, tinha derrubado uma mesa, sujado o vestido
de uma convidada com vinho. Até que muito delicadamente, o retiraram da festa.
Depois disso nunca tinha se lembrado do que havia acontecido. Apenas que havia
acordado no hospital seminu e machucado. A enfermeira havia lhe dito que ele
tinha sido assaltado e deixado a própria sorte no meio da rua. E então a vivida
imagem lhe deu as respostas que procurava:
“Começou a lembrar que, depois que saiu
daquela festa, bêbado e aborrecido, foi a um bar e se encontrou com dois amigos.
Ou que pensava serem amigos de verdade. Em uma visão ampliada, conseguiu
observar quando o seu amigo Marouço lhe colocara um comprimido no copo de
conhaque. Os viu levarem seu corpo desacordado a uma viela escura. Lá sem um
mínimo pudor, a menor decência, o estupraram, roubaram seu dinheiro e parte de
suas roupas só para completarem “a brincadeira” que haviam proposto. Riam e
debochavam. Com suas almas negras, atiçadas por forças escuras e secretas.
Depois de estarem satisfeitos, foram embora abraçados e rindo muito. Foram
beber a custa de Elias. Perto dali outro amigo de Elias observava tudo. Bartolomeu.
Ele presenciou escondido,toda a barbárie cometida contra o pobre coitado. E
pensar que Elias tinha humilhado Bartolomeu por ele ser pobre, humilde. Em um
dia de bebedeira havia agredido o amigo por nada. Por nada. As coisas acontecem
de maneira estranha. Bartolomeu pegou o amigo, e o levou ao hospital.”
O choque do reconhecimento. O choque foi
vergonhoso e cruel. De sua condição de alcoólico inveterado. Então pela
primeira vez na sua vida, havia sentido vergonha. Mas foi um sentimento atroz.
O seu peito parecia que ia explodir. Todo o seu ser, tudo que tinha sido, e o
que seria, queria perecer. Apagar e desaparecer do mapa do mundo. Diante de
toda essa angustia, de tudo que viu e sentiu, não aguentou. E então pela
primeira vez em sua vida chorou. Em um pranto copioso e profundo.
Quando já não havia lagrimas para
chorar, teve uma visão do espírito do chafariz. Uma forma de luz, sorridente.
Essa luz só ficou ali. Acalentando. Abraçando. Curando. E Elias se sentiu
melhor. Mais seguro, e compreendeu o que significava aquela magia. O poder por
trás de tudo que é bom.
Saiu dali e foi procurar Bartolomeu. Ao
chegar à casa do antigo amigo encontraram tudo fechado, as luzes apagadas.
Procurou saber sobre ele. E um vizinho, um moreno de barba branca, lhe disse
que Bartolomeu estava hospitalizado. Sim, sabia o nome do hospital e daria a
ele. Elias em desespero pegou a primeira condução que apareceu. Ao chegar ao
enorme prédio branco, procurou a atendente e foi encaminhado ao quarto certo, descobriu
o amigo sedado. “Não tinham o dinheiro para o tratamento” lamenta a esposa. Elias
sorriu, “agora tem” disse. Ainda tinha algumas economias, mais que o
suficiente. E em uma tarde ele sem o sentir cumpriu as três promessas, pedido
pelo pajé Umbu Cajá.
No finalzinho da tarde, Elias voltou ao
“chafariz”. Ele se sentia renovado. Sentou perto da torneira para meditar. Que
interessante, ele não sentia vontade de beber. Permaneceu ali por algum tempo.
Olhos fechados. Só em silêncio. Sentindo algo novo. O corpo renovado. O mesmo
corpo, mas novo, na vontade e na esperança.
Quando a lua já começa a sair, e quando
o barulho dos carros vai diminuindo, ele sente uma pessoa se aproximar. Para
sua total surpresa é sua ex-esposa. Aquela mulher que ainda ama. Ela também
está surpresa, mas confessa que ela sempre vai nessa bica, que alguém disse
para ela que era uma fonte mágica. Para fazer uma promessa para ele, Elias, ficar
curado. Nessa prova de amor. Nessa “coincidência” fantástica eles se abraçam. Quem
disse foi um pajé? Não. Ela disse que tinha sido um padre junto com um pastor
protestante. Que um dia apareceram e lhe ensinaram um meio de livrar o seu
marido do vicio de beber. Disseram também, que Deus tinha estranhos métodos e
caminhos para resolver os problemas humanos. Mas que curioso. Elias explicou
tudo à mulher que amava. E então os dois saíram juntos de mãos dadas.
Espantados com a força que existe por trás do amor. Agora sabia como. Se
soubesse como era simples. O seu espírito levava o seu corpo renovado e sua
esposa, já na mesma flor de sonho. Vendendo retidão.