sexta-feira, 31 de agosto de 2012


 
O Chafariz das Almas

 

Elias Ribaldo agora sóbrio se via em um aquário silencioso, em sua cabeça, é lógico. Aquela fonte era a certa. A que foi indicada como a que lhe daria a esperança de transformação. Faria tudo certo. Cumpriria as suas promessas. Tentaria, ou melhor, faria o ritual, que o homem havia ensinado. Ali começaria a sua árdua viagem dentro de si mesmo. Ele se lembrava do curandeiro que lhe aconselhara a procurar uma fonte na cidade que tinha poderes curativos e mágicos. Foi depois de ter tentado tudo. Os alcoólicos anônimos as praticas da medicina oriental, a fito terapia, até um terreiro de umbanda. Quando já estava quase perdendo as esperanças, conheceu Umbu Cajá, um pajé do alto Solimões. De cocar e tudo. Mas esse índio tinha um estranho sotaque, que ele não conseguia atinar de onde seria. O pajé havia lhe dito que apenas uma água pura, proveniente de uma fonte antiga, de leito de um determinado mineral, teria a força para curá-lo, fazendo com que o seu sangue reagisse à mudança bioquímica causada pela bebida. Mas ele disse também, que essa mudança seria espiritual. Dentro do entendimento que Elias tinha com relação a sua vida. Seria rápido. Com uma resposta simples e direta.

Com essas idéias na cabeça Elias saiu à procura deste misterioso chafariz. Foi informado que esse monumento tinha sido construído na Europa no inicio do século dezenove. Que foi transferido para cá a pedido da família imperial. E foi colocado no centro da cidade. Que anteriormente, até o inicio do século vinte ele estava incólume, com seus mil e quinhentos quilos de bronze. Com um desenho harmônico de dois meninos nus segurando uma jarra, de onde jorrava uma água cristalina. Com o passar dos anos, as reformas continuas, o replanejamento urbano, a obra do tempo, a ação de ladrões, haviam transformado essa jóia da técnica de construção de chafarizes, em uma acanhada torneira. Um lugar público onde se lavava roupas. O único sinal que uma vez existiu algo assim, indicando o lugar exato do monumento, era uma marca gravada no cimento, era o de um rouxinol segurando no bico um galho de louro e uma letra “b”, na folha principal. Pelo menos, era isso que Umbu Cajá havia lhe dito. Mas pensando bem, como ele havia descoberto tudo isso? Com certeza fazia parte do repertorio de informações dos pajés do alto Solimões. Ou ele teria conseguido essa informação por meios sobrenaturais.      

 Depois de muita procura e chateações, Elias chegara ao chafariz. Ali estava à pequena torneira, com o desenho que ele, o pajé, havia indicado. Relembrou a estória que o curandeiro lhe contou sobre as propriedades da água desse chafariz. Mas como? Ali só via uma torneira enferrujada que dava a uma banheira e o chão verde de musgos e sujeira. Em sua visão idílica, havia imaginado outra coisa. Algo mais grandioso. Mas o que Umbu havia dito mesmo? Sim, “abra a torneira”.

Quando abiu a torneira, ouviu um barulho de algo querendo escorrer. O barulho persistia, mas não caiu nem uma gota de água. Ao invés do liquido incolor, Elias começou a sentir uma sensação na barriga. Logo se transformou em uma sensação suave, mas indescritível. E isso aumentou até chegar a sua mente. “Onde tombou uma alma jovem”. Ele sentia isso, pressentia os vultos. E começou a ver imagens, fragrâncias e pensamentos alheios. O brilho das flores. O jorro da água límpida como um jarro de cristal em sua mente. Existia magia ali. Algo sem resposta pragmática. A alma do mundo tinha ali o seu pequeno significado. Elias guardava os seus excessos viciosos com zelo, agora era momento de se livrar deles. Tencionava beber da água, e viajar no vinco do mundo, em rebanhos de luz, como haviam descrito para ele. Essas palavras misteriosas para ele faziam sentido. Queria ir, aonde almas vacantes iam ao léu. Quando iam ao encontro de suas respostas.

O pajé havia dito também, para que ele fosse curado era necessário cumprir três desafios que lhe possibilitaria a liberdade: ter a capacidade de sentir vergonha; ter o direito de chorar; e retribuir um favor. Para qualquer pessoa isso seria relativamente fácil. Mas não para ele. Como iria fazer isso? Não sabia por onde começar. Era verdade que por mais que tentasse jamais havia sentido vergonha ou remorso do que fazia nessa sua vida tão cheia de percalços. Considerava-se uma pessoa boa normal, mas era orgulhoso como ninguém. E também, havia levado sua esposa e seus filhos quase a miséria total, por causa da bebida. Chorar? Nunca havia lembrado desse fato. Sentia-se incapaz de verter uma lagrima que fosse mesmo aos piores momentos que sofrera isso não tinha acontecido. E também, que favor era esse que teria que retribuir? Não conseguia imaginar o que seria.

 

Com as faculdades proporcionadas pela fonte mágica, súbito relembra a sua vida da prosperidade à miséria causada pelo alcoolismo (onde tombou uma alma jovem). Como fizera sofre a mulher que tanto amava. De como envergonhou os filhos diante da sociedade e da historia da família. Mas que sina. Como se sentia mal, o pior inseto, diante da constatação. De repente, uma imagem nítida lhe apareceu diante de seus olhos interiores. Veio não se sabe de onde, uma lembrança de um dia passado, clara como uma curta metragem de cinema. Foi um dia após uma recepção regada a vinho e champanhe, tinha feito o maior escarcéu, tinha derrubado uma mesa, sujado o vestido de uma convidada com vinho. Até que muito delicadamente, o retiraram da festa. Depois disso nunca tinha se lembrado do que havia acontecido. Apenas que havia acordado no hospital seminu e machucado. A enfermeira havia lhe dito que ele tinha sido assaltado e deixado a própria sorte no meio da rua. E então a vivida imagem lhe deu as respostas que procurava:

“Começou a lembrar que, depois que saiu daquela festa, bêbado e aborrecido, foi a um bar e se encontrou com dois amigos. Ou que pensava serem amigos de verdade. Em uma visão ampliada, conseguiu observar quando o seu amigo Marouço lhe colocara um comprimido no copo de conhaque. Os viu levarem seu corpo desacordado a uma viela escura. Lá sem um mínimo pudor, a menor decência, o estupraram, roubaram seu dinheiro e parte de suas roupas só para completarem “a brincadeira” que haviam proposto. Riam e debochavam. Com suas almas negras, atiçadas por forças escuras e secretas. Depois de estarem satisfeitos, foram embora abraçados e rindo muito. Foram beber a custa de Elias. Perto dali outro amigo de Elias observava tudo. Bartolomeu. Ele presenciou escondido,toda a barbárie cometida contra o pobre coitado. E pensar que Elias tinha humilhado Bartolomeu por ele ser pobre, humilde. Em um dia de bebedeira havia agredido o amigo por nada. Por nada. As coisas acontecem de maneira estranha. Bartolomeu pegou o amigo, e o levou ao hospital.”

O choque do reconhecimento. O choque foi vergonhoso e cruel. De sua condição de alcoólico inveterado. Então pela primeira vez na sua vida, havia sentido vergonha. Mas foi um sentimento atroz. O seu peito parecia que ia explodir. Todo o seu ser, tudo que tinha sido, e o que seria, queria perecer. Apagar e desaparecer do mapa do mundo. Diante de toda essa angustia, de tudo que viu e sentiu, não aguentou. E então pela primeira vez em sua vida chorou. Em um pranto copioso e profundo.

Quando já não havia lagrimas para chorar, teve uma visão do espírito do chafariz. Uma forma de luz, sorridente. Essa luz só ficou ali. Acalentando. Abraçando. Curando. E Elias se sentiu melhor. Mais seguro, e compreendeu o que significava aquela magia. O poder por trás de tudo que é bom.

Saiu dali e foi procurar Bartolomeu. Ao chegar à casa do antigo amigo encontraram tudo fechado, as luzes apagadas. Procurou saber sobre ele. E um vizinho, um moreno de barba branca, lhe disse que Bartolomeu estava hospitalizado. Sim, sabia o nome do hospital e daria a ele. Elias em desespero pegou a primeira condução que apareceu. Ao chegar ao enorme prédio branco, procurou a atendente e foi encaminhado ao quarto certo, descobriu o amigo sedado. “Não tinham o dinheiro para o tratamento” lamenta a esposa. Elias sorriu, “agora tem” disse. Ainda tinha algumas economias, mais que o suficiente. E em uma tarde ele sem o sentir cumpriu as três promessas, pedido pelo pajé Umbu Cajá.

No finalzinho da tarde, Elias voltou ao “chafariz”. Ele se sentia renovado. Sentou perto da torneira para meditar. Que interessante, ele não sentia vontade de beber. Permaneceu ali por algum tempo. Olhos fechados. Só em silêncio. Sentindo algo novo. O corpo renovado. O mesmo corpo, mas novo, na vontade e na esperança.

Quando a lua já começa a sair, e quando o barulho dos carros vai diminuindo, ele sente uma pessoa se aproximar. Para sua total surpresa é sua ex-esposa. Aquela mulher que ainda ama. Ela também está surpresa, mas confessa que ela sempre vai nessa bica, que alguém disse para ela que era uma fonte mágica. Para fazer uma promessa para ele, Elias, ficar curado. Nessa prova de amor. Nessa “coincidência” fantástica eles se abraçam. Quem disse foi um pajé? Não. Ela disse que tinha sido um padre junto com um pastor protestante. Que um dia apareceram e lhe ensinaram um meio de livrar o seu marido do vicio de beber. Disseram também, que Deus tinha estranhos métodos e caminhos para resolver os problemas humanos. Mas que curioso. Elias explicou tudo à mulher que amava. E então os dois saíram juntos de mãos dadas. Espantados com a força que existe por trás do amor. Agora sabia como. Se soubesse como era simples. O seu espírito levava o seu corpo renovado e sua esposa, já na mesma flor de sonho. Vendendo retidão.

 
 
Negocio em Família

 

-Onde você estava meu filho? A essas horas da noite?

-Eu to legal mãe.

-Tá parecendo meio alterado, você bebeu? Ou experimentou outra coisa? Olha que eu não permito que você aja assim! Eu não permito!

-O que você não permite mãe? Que eu seja eu mesmo. Que não tenha falhas? Não é nada disso que você está pensando!

-Como não? Seus olhos estão vermelhos. A sua voz está diferente, arrastada. Está todo sujo meu filho!

-E a senhora está mais suja do que eu. Eu vi.

-O que você está falando? Você está drogado!

-E até parece que a senhora não sabe o que é isso...

-Eu não admito que você fale assim comigo, entendeu?

-É eu sei, pra você é só negocio, ou não sabe onde eu consegui a droga? Daquele estoque maravilhoso que tem lá na casa de praia.

-E você foi à casa de praia fazer o que? Você sabia que ela está em reforma. Eu disse para você não ir lá!

-Eu sei. Prá não ver o grande negocio que você tem. Até os meus amigos estão usando os seus produtos. E vou confessar que é da boa!

-Você não sabe do que está falando. Não diga isso para ninguém ouviu? E não vem me dizer sermão. Um dia quando você trabalhar, pagar as suas contas, vai ver como a vida é dura.

-Eu sei, blá,blá,blá. Falando nisso posso fazer um vale?

-Mas vê se não abusa.