domingo, 23 de setembro de 2012


 
 
 
Percepções

 

Com seus olhos de tristeza, ele só conseguia ver um prédio deprimente e sombrio. Mesmo este sendo moderno e recém-construído, parecia embotado. As paredes eram nuas de sentimentos. Com seus doze andares, a pouca luz que se podia divisar, só permitiam adivinhar as grandes janelas de vidro fosco, onde algum movimento, às vezes era perceptível: sombras como espectros, mãos balançando, cabeças em negativa. Orlando chegou primeiro ao prédio. Não queria vir, estava ansioso, entretanto, poderia reverter as coisas. Tudo na vida tem um jeito. Ainda poderia salvar a situação. Apesar dos seus olhos terrivelmente tristes.

Ela por sua vez era quase feliz. E finalmente chegou ao prédio, que mesmo à noite reluzia. De suas grandes janelas de vidro, podiam-se sentir os risos alegres, o som dos brindes de copos de cristal. O prédio moderno e novo resplandecia a noite. Suas cores e luzes e luzes lembravam um belo dia festivo, e de suas paredes desprendiam uma estranha e gostosa energia de felicidade. Fátima estava radiante. Poderia voar se pudesse. Enfim era uma chance de recomeço. Mas por hora, só queria subir até a sala do advogado e resolver a situação.

Da mistura da alegria com a tristeza, saiu algo confuso. Esse casal sempre foi anfibológico mesmo. Nesse processo de acertos e claudicações, muita coisa foi dita, mas a digestão foi difícil, manhosa.  Os dois saíram juntos do prédio, enquanto desciam no elevador, pareciam que estavam invisíveis um para o outro. Um constrangimento alheio parecia um muro a separá-los. Orlando e Fátima. A tristeza e a quase felicidade. Perguntamos se a situação foi resolvida, se houve sequer uma pequena luz que brilhasse nessa escuridão de sentimentos. O caso não foi resolvido, e pior, os dois saíram mais embolados do que antes. Enroscados como duas serpentes no acasalamento. Mais apaixonados do que antes. Embora, não quisessem admitir isso um para o outro. Coisa estranha é a relação humana. Quando no escritório do advogado, Fátima estava decidida a começar vida nova, a formalizar o divórcio. Quando viu Orlando, suas pernas fraquejaram, sentiu um frio na barriga que quase fez subir o jantar pela goela à cima. Ele por sua vez, ao perceber que ela não decidiria nada naquele momento, sentiu uma emoção difícil de descrever, sentiu que ressurgira das cinzas, como uma fênix, esperançoso, embora as percepções dos dois continuassem diferentes, individuais. Mas quem disse que o amor é a visão única? Pensou ele. Eles ainda poderiam dar certo. Bastasse tão somente, que suas visões fossem claras o suficiente, e tentassem ver bem. Que enxergassem um ao outro em suas visões singulares.

 
 
 
 
O Sábio e o Presidente

 

Era uma vez, em um distante país em nossa imaginação, um grande líder político, amado por grande parte de seu povo, que foi procurar um grande sábio, que morava perto de uma montanha nevada que na verdade era um vulcão ativo, afastado da civilização. Ele buscava respostas para uma pergunta que assolava o seu pensamento de político. Passara varias noites insones, e questionara os homens mais inteligentes do seu tempo, mas nenhuma das respostas o satisfizera. Nada para ele parecia fazer sentido, uma vez que, fizera um governo como ninguém havia feito antes, e por isso, se achava acima do bem e do mal. Uma vez que, estava impaciente pela resposta ao enigma que havia proposto, embrenhou-se pelos caminhos ermos, até chegar ao local onde morava o sábio da luz dourada. Ao chegar perto de um casebre de madeira, no começo da noite, aos pés do vulcão, chamou pelo sábio, e então, um velho senhor abriu a porta:

- Quem está ai, que me importuna, bem a hora de meu jantar?

- Eu o outrora governante desse país, o maior de todos, o mais perfeito, o amado pelos pobres, o que nunca erra!

O sábio curioso, uma vez que sabia que tal homem não podia existir, o convidou a entrar. Uma vez lá dentro, o governante sem governo, lhe apresentou uma charada que necessitava de uma resposta direta e perfeita em todos os detalhes. Sem demoras, foi logo perguntando ao sábio ancestral:

- Meu companheiro, meu arguto amigo, a grande pergunta, a que vale mais um governo em meu futuro é:  se um governante fosse tão amado por seu povo, e tivesse tirado da miséria um grande numero de famílias, se tivesse sido considerado uma das maiores esperanças do mundo no combate a fome, seria justo se esse homem tivesse seus amigos perseguidos, seu filho escorraçado, e sua integridade moral posta em prova, ainda mais que representasse a esperança do futuro de seu país? Seria licito que seus opositores usassem esses fatos para destruir esse tão bondoso governante?

O sábio esboçou um sorriso e pegou o governante pelos braços perguntando:

- Meu filho só posso responder que não e sim.

- Mas como meu sábio, como assim?

- Não se a verdade estivesse com o governante, e sim se a verdade estivesse longe dele. O que sente pelo seu povo?

- Eu os amo!

- Como você ama seus governados?

- Como um pai ama seus filhos. Procuro dar-lhes tudo aquilo que lhes foi negado, alimentação adequada, instrução merecida, e um futuro digno!

- Pois imagine você, que um governo de outro país que não é perto de nós, criou uma lei que não permite que os pais conduzam a ação de seus filhos, que mesmo os amando, estão proibidos de sequer repreendê-los, quanto mais dizê-los o que fazer. Agora pergunto, quando esse filho erra, a quem deve prestar conta? Uma vez que, a justiça só se pronuncia quando provocada, e aos pais é proibida o controle sobre os atos de seus descendentes?

- Mas isso é um absurdo! Se o pai ama seus filhos deve procurar de todos os meios a seu dispor, que não caiam em erro, que obedeça a lei acima de tudo! -disse indignado o governante.

- Mas se esse filho corresse o perigo de ser preso, o pai não poderia se exceder em seu zelo, e tentar livrar seu filho, com todos os meios que dispõem, mesmo que burle a justiça?  Tal lei, que mencionei, não serviria para impedir excessos como esses por parte dos pais?

- Eu como grande governante digo que jamais, permitiria tal lei, e que também nunca permitiria que meu filho agisse assim!

- Nem mesmo um amigo muito chegado e companheiro de jornada?

- Muito menos estes!

- Então meu bom homem, o governante e o pai teriam as mesmas preocupações e responsabilidades?

- Sim meu grande sábio.

- Então respondi sua pergunta.

- Como assim? – interrogou o governante curioso.

- É sabido que, um grande governante, mesmo quando imbuído de verdadeira intenção de ajudar seu povo, pode se imbuir de tal confiança e certeza de predestinação, que o próprio amor lhe venha a ser usado como instrumento de império. Que talvez venha em seu auxilio, aqueles de seu povo, que preferem, em sua ilusão, que amem mais a figura de seu governante que a lei e a justiça. Muitos são aqueles que se apaixonam. Muitos são que estão dispostos a passar por cima da lei e da justiça para verem a concretização de seus sonhos. Mas perguntamos, onde começa o sonho e onde termina a ilusão de sonho? Onde começa a nossa certeza sobre o bem? Quem seria a favor de um grande governante, mesmo que servisse aos ditames do mal? Que seu povo desse a ele e ao seu partido político, salvo conduto para que se perpetrassem as maiores arbitrariedades? Pois respondo a tudo que me foi questionado com esse simples pensamento: Não são os reinos, nem mesmo o poder do povo, que deve se guiar o homem, mas apenas a verdade. Porque a verdade o libertará. A verdade é tudo que importa. Sem a verdade, somos presos da ilusão de verdade, e somos até contra ela, quando contrariados em nossos sonhos. Ninguém suporta ver suas ilusões destruídas. E se revoltarão contra as instituições e derrubarão todos os livros da lei, para que subsista a figura de seu deus: O bom governante que não admite que possa errar. Serão terríveis mãos de ferro a esmagar aqueles que contrariarem os seus sonhos, mesmo que sejam quimeras de sonhos.

Dito isso, o pequeno e velho sábio da luz dourada, aquele que morava em um casebre perto de um vulcão, se despediu do homem que achava que nunca poderia errar. E foi continuar o seu jantar.