O Arrependimento Homicida
A última ceia de perfídias. O hospital
central. É na ala psiquiátrica que vamos, mais exatamente ao quarto quinze. No
quarto, Jose Ribamar acaricia um urso de pelúcia. Ele parece estar meio
adormecido, mas na realidade está lembrando. Existem coisas que quer lembrar
avidamente, mas existem outras coisas que quer esquecer com toda sua força. A
própria luz solar que penetra no quarto lhe trás imagens do passado: o primeiro
dia na academia de policia, o estande de tiros, a farda cinza azulada, e as
cadencias marciais. Dentro desse caleidoscópio mental, coisas terríveis
afloram. Ele fecha os olhos para esquecer. Mas não adianta. As imagens invadem
o espaço além dos seus olhos e se chocam com as paredes fazendo um som de
estrondo. Nesse processo ele começa a chorar às vezes bem baixinho num choro de
alivio e às vezes com gritos de desespero. A culpa o consome vivo. Há um fedor pegajoso,
que ele sente, ou pensa sentir. É um odor de morte. Por mais que se banhe, que
limpem o quarto isso o acompanha a todos os lugares e isso é pior que os risos
que pensa escutar. O som de tiros disparados vindos do nada. Algumas vezes em
um reflexo condicionado, abaixa a cabeça rapidamente, como uma ação para se
livrar das balas que zunem pelo quarto vazio. O tenente Daniel um jovem medico
de vinte e oito anos, procura acalmar José que está agitado, o sargento parece
ver coisas. O medico pergunta se ele tomou o remédio, ele diz que sim e fecha
os olhos.
A primeira morte sombria. É isso que
está lembrando agora. Ele se vê no beco da favela no complexo do alemão. Ele é
jovem, ainda um soldado. Eles são cinco de um grupo total de sessenta, que
naquele dia sobem o morro em represália a um comboio do mal; essa investida dos
traficantes rendeu cinco mortes de inocentes lá em baixo. Os cinco policiais de
coletes a prova de bala estão carregando fuzis automáticos e pingam de suor, o
sargento do dia grita. “tem gente correndo na laje!” a tensão aumenta
assustadoramente, José é impelido pelas costas por um mais antigo:
-vamos lá garoto. Aponta para o alto.
Tá vendo? É um soldado! Tá vendo a ponta do fuzil?
-não é não. É uma criança com uma
vassoura!
-mas você é panaca mesmo. Ele vai
fugir, atira, agora!
-mas é uma...
-atira agora seu merda!
No som do tiro, José abre os olhos. O
jovem médico está olhando para ele, lhe oferece um copo d’água, o tenente pergunta
como ele está se sentindo, o sargento olha pelos cantos dos olhos. Na porta
meio aberta, ele vê um vulto bem nítido de um garoto de seus catorze anos com a
cabeça estourada, a face suja de sangue coagulado. Essa imagem dura uns
segundos. E então José se deita na cama e vira para a parede, para não ver mais
nada.
Para uma alma que quer salvar-se do
esmagamento celeste, esse sentimento é um peso que não pode ser medido. Esse, o
peso da loucura, em um desfile surreal e humano. No diagnostico de
esquizofrenia, colocaram em letras bem grandes: acessos de paranóia e delírios.
Mas José não entendia muito bem disso, ele só sabe que nas viaturas, no
quartel, e até em casa, pessoas estranhas vinham falar com ele, e o mais
estranho, e que essas pessoas lhe eram familiar, de alguma maneira as via. Uma
vez no quartel ele chamou um colega:
-ei Romário. Quem deixou esse neguinho
entrar?
-que neguinho homem?
-aquele que está ali perto da parede!
Ele tá todo sujo! Tá sujando tudo!
-mas do que você tá falando, não tem
ninguém ali!
E então as visões começaram a ser mais
sangrentas e inusitadas. Um dia estava à paisana em um banco, de repente sem
mais nem menos puxou do revolver calibre trinta e oito que estava na cintura, começou
a gritar com alguém invisível, o banco estava lotado de pessoas, a situação só
foi contornada por que um capitão o reconheceu, e conseguiu acalmá-lo.
“Não me obrigues ao beijo do ouro ardente
e o preço do lingote frio”. Era sempre isso que dizia quando alguém o
contratava para algum “serviço extra”. Havia lido essa frase em uma revistinha
em quadrinhos, achava que era do faroeste americano “Tex”, ou outra qualquer,
mas achou legal a frase, e começou a usá-la como uma piada irônica, isso foi
antes de ficar realmente doente, quando já não conseguia se controlar. Uma noite
no hospital, quando o jovem médico veio vê-lo José estava com um olhar parado e
balançava o corpo levemente em um embalo de segredos:
-doutor.
-sim sargento, o que é.
-o senhor já matou alguém.
-não José. Eu sou medico lembra? Eu
salvo vidas ao invés de tirá-las.
-eu já. Muitas pessoas. O senhor sabe
quanto vale um neguinho?
-não.
-uma vez eu cobrei dez grades de cervejas.
Será que foi muito?
-o que você acha? Quanto vale uma vida?
Por acaso isso lhe fez algum bem?
-não. Eu não consigo entender como pude
fazer isso. Eu lembro que, nem tomei as cervejas. O cara morreu antes de me
pagar.
A forma empenada. Ele começou a vê-la
pelos cantos do hospital da policia militar. Vinha andando, imagem distorcida,
caminhava quando todos estavam dormindo. Esse vulto chegava perto dele e fazia
cobranças absurdas! José reconheceu o rosto, era do traficante “Toinho de Duque
de Caxias”. “O que esse maldito queria? Eu o matei há oito anos!”. José fugia
dele, Corria pelos corredores, “como é que vou arrumar uma motocicleta para
você? Você tá morto! Vai amolar o diabo!” O revolver seco e o sangue profundo:
essas duas imagens não fugiam de sua mente, aquela foi uma morte demorada, o
cara agonizou durante duas horas. Que noite.
Alguma coisa Corroia sua alma. O
naufrágio da alma. José estava arrependido de tudo que fizera, mas eles não
entendiam, continuavam a persegui-lo, a cobrar, traziam coisas estranhas, o
ursinho de pelúcia desapareceu, José acreditava que alguns desses malditos haviam
roubado o ursinho, ”eles só querem me sacanear.” Pensava enquanto comia o seu
almoço: purê de batatas com carne moída. Parecia um “presunto” que vira uma
vez.
Promessas cavernais são proferidas. No
segundo dia de carnaval, Jose estava aflito. Logo depois que acordou, percebeu
que o quarto estava cheio, estava ali o homem da barraca de angu, o soldado
Matias forte e gago, cinco moleques que haviam sido levados para “o aparelho de
microondas”, o juiz da comarca de Campos, a bela moça de manguinhos, dançando
feliz um samba, o carrancudo “rato velho” cheios de correntes de ouro, O menino
da vassoura e outros meios nebulosos. José escondeu a cabeça debaixo do lençol,
mas não adiantou, eles ficaram o carnaval todo. O jovem médico voltou na quarta
feira de cinzas, e procurou os relatórios e as prescrições:
-enfermeiro!
- estou aqui tenente.
-esqueceram de dar a medicação ao
paciente do quarto quinze. Ele passou o
carnaval todo careta?
-Eu também estava de folga tenente.
-será que o José está vivo?
O tenente encontrou o seu paciente
deitado no chão, pratos e comida espalhados pelo quarto, o travesseiro e o
lençol estavam rasgados, o corpo estava só de cuecas e ele estava todo urinado.
O medico balançou a cabeça. “vou dar o remédio agora.”.
Jose disse para o doutor que alguém
estava tentando “contratá-lo”. Era a lembrança mais nítida daqueles dias, fora
a vontade de vomitar, até que tudo correu quase normal:
-doutor o quarto está sujo de sangue?
-não José. Por quê?
-aquela gente toda machucada e
pingando. Eu pensei que tinham sujado tudo.
-então a festa foi grande, em?
Dois meses depois um novo “personagem”
entrou na vida de Jose. Uma jovem e sensual mulher lhe visitou. Ele a via meio
turva, enevoada, mas o que ele mais estranhou foi que ela tinha um rosto que
lembrava sua mãe:
-quem é você mulher?
“eu vim te ver. Mas você não parece
muito feliz. E os seios, você gosta?
-o que você quer afinal? O enfermeiro
já vai chegar.
“você não sabe? Sabe sim. Sabia que sou
sua mãe? Ou você esta vendo uma sombra? Ou você prefere um cachorro?”
-não! Não se transforma não! Estou com
medo! Você vai me morder! Socorro!
“está bem. Pronto. Eu sou uma mulher de
novo.”
-por favor, vai embora!
Essa foi à fase dos amores sepulcrais.
Os delírios eróticos ganharam em intensidade e estranheza. Eram arrepiantes. Bichos
e pessoas se misturavam, objetos cotidianos ganhavam vida e mortos pareciam
ganhar a sua intimidade com sexo. Decidiu-se mudar o medicamento, e por algum
tempo o sargento José teve uma relativa paz. Ficou apenas o aperto no peito, um
sentimento profundo de angustia. Como alguém sem conhecimento psiquiátrico
poderia dizer que, esse paciente estava apresentando alguma melhora no quadro
clinico? Às vezes aparecia alguém, vindo não se sabe de onde, uma sombra, e
dizia que ele estava bem, e então ele acreditava, José estava mais calmo. Em
alguns momentos poder-se-ia dizer que ele estava até feliz. Talvez a mudança na
medicação tenha surtido algum efeito. O fato de nota nesse período foi à visita
do filho de José Ribamar, um rapaz alto e magro, de óculos pretos:
-oi pai. Como é que o senhor estar? O
medico nos disse que o senhor tem melhorado.
-oi filho! Na verdade estou me sentindo
muito bem. Dentre em pouco vou poder voltar à ativa. Eu recebi até uma proposta
de serviço!
-ah foi? E que proposta é essa? Quem
fez? O doutor não disse nada sobre uma alta medica!
-isso porque o tenente é muito
discreto. Ele não gosta de espalhar noticias. Principalmente porque ele sabe
que esse meu “serviço” é sigiloso, é da policia. Entende?
-tá bem pai. Tá bem.
No outro dia o filho voltou ao hospital
com uma sacola de frutas para o pai. O rapaz se encontrou com o jovem médico e
os dois foram para o quarto quinze. Quando abriram a porta José está de pé no
centro do quarto vestido com o seu antigo uniforme:
-o que você está fazendo vestido de
uniforme José? Cadê o enfermeiro? Eu mandei ele te medicar! Mas que coisa
rapaz!
-não se preocupe doutor. Eu estou
pronto. Eu fui contratado para fazer um serviço, ou melhor, um trabalho cívico,
eu sei que eu vou ganhar muito dinheiro - dizia com os olhos vidrados - vou
ficar rico. Meu filho você também esta aqui! Você vai ficar orgulhoso de mim! Eu
fui incumbido de “apagar” o pior bandido de todos, e esse realmente é merecedor
da morte, e eu estou feliz de fazer esse serviço – falando rapidamente como se
o tempo fosse evaporar - vocês me entendem? Ele merece! Pela primeira vez vai
ser um que realmente merece!
-mas pai...
-não se preocupe meu filho. Nesse
pedaço de papel na minha mão está o nome do canalha. Pode deixar que eu não vou
falhar. Eu não vou decepcionar vocês!
Jose atirou o pedaço de papel ao chão e
fez um esforço para deixar o quarto. Ele queria ir. Ele precisa ir. Para fazer
“o serviço”. Mas eles conseguem contê-lo. Foi preciso a ajuda de mais três
enfermeiros para refrear o sargento. Aplicaram-lhe uma injeção de
tranqüilizantes e ele foi levado para outra ala acompanhado do filho. O medico
entristecido apertou os lábios, pensativo “mas ele estava melhorando! Que
lastima!” o jovem médico abaixou a cabeça e viu um pedaço de papel. Pega. Ao
abri-lo estava escrito com a letra do sargento: alvo José Ribamar.
E foi essa, a desesperada tentativa de
uma alma de alcançar algum tipo de redenção. Para tentar consertar as coisas,
de punir a si mesmo por tantas desgraças. Para que uma pessoa perturbada se
salvasse da danação eterna. Para que alcançasse o céu espiritual ou que
houvesse ainda uma alma, a sua alma a sete palmos de altura, perto do céu
imaginado.