quinta-feira, 22 de novembro de 2012


 
Microconto:   Maldição Eterna

 

Um bruxo muito perverso lançou um encantamento sobre uma cidade. Disse a todos seu vaticínio: não terão opções em suas vidas, terão que deixar suas marcas indeléveis na inutilidade, serão motivos de escárnios para os donos do poder, e farão viagens infrutíferas para seus filhos. Dizendo isso, arrumou o seu cabelo, dirigiu-se para a cabine de votação e votou em branco.

 
 
Microconto:  Cavalagens Escolares

 

Era uma vez, um cavalo que galopava no shopping. Relinchava, defecava, e devorava um bolo. Tinha a idade de um rapazote, e cuspia em quem passava. Mas um belo dia apareceu um desconhecido, e deu três tiros no pobre animal. A partir desse dia infeliz, todos os cavalos passaram longe do shopping, e ficaram no colégio.

 
A Gestante

 Em uma pequeníssima vila do sul do país, vivia em uma comunidade alternativa, um anão, um velho erudito, dois vendedores de sonhos, três desertores do exercito, uma ninfa do bosque, uma dançarina do véu, e uma domadora de feras cega. Eles viviam em completa harmonia, até que a ninfa apareceu grávida. Como nenhum dos homens quisera assumir a paternidade da futura “criança”, o delegado de policia foi chamado. O homem todo vestido de negro chegou à vila em mutismo absoluto. Com uma folha de papel as mãos, mandou que os homens ficassem em fila, como em uma inspeção militar. Fez uma inspeção geral dos pés a cabeça dos suspeitos, com olhos graves que perfuravam as almas daqueles, simplesmente gemendo baixinho: “hummm”, “huummmm”. Subitamente parou, fechou os olhos, levantou um dedo aos céus para sentir a direção dos ventos, e com um gesto teatral apontou o mesmo dedo para um senhor magro, calvo, que usava uns pequenos óculos redondos. O homem diante do choque da descoberta de seu desatino baixou a cabeça e começou a chorar. Os outros perguntaram ao delegado como ele havia descoberto. Que segredo havia usado. O homem da lei respondeu que havia lido na lista as conquistas do erudito. Engravidar uma ninfa? Tal ideia só poderia ter saído da mente de um poeta.

 
 
O Sábio e a Beleza

 

Um grande mestre que a muito estava longe dos apetites da carne, um dia foi visitado por uma mulher lindíssima. Ela no intuito de impressionar esse conhecido ermitão, vestiu o seu vestido mais sensual, pintou-se e enfeitou-se com um esmero que a sua beleza cegava de tanto brilho. Fez isso e foi até ele para lhe fazer uma única pergunta:

“Meu adorado mestre, vim aqui apenas para perguntar-lhe o porquê de não podemos viver para sempre”? “Por acaso não seria mais produtivo se pudéssemos viver e produzir ininterruptamente em prol do progresso do mundo”?

O sábio homem sorriu do tom filosófico da jovem, e respondeu com voz calma:

“Se contentaria em vestir apenas um vestido de dançarina por toda sua vida, em dançar para todos os homens, em todas as festas, apenas dançar, e nada mais”? Não creio que aguentasse, o incomodo de usar apenas um vestido, por quarenta, cinquenta anos, e apenas dançar, e não fazer nada mais. Pois ansiar em ser algo mais é da natureza humana. Por mais que duvide, por mais coisas que existam na terra em termos materiais, não conseguiríamos fazer tudo que a nossa essência espiritual necessitaria em uma única vida. Aqui nessa terra em que vivemos, é necessário que mudemos de roupas muitas vezes, para que possamos cumprir infindáveis tarefas e para que conheçamos muitas e muitas coisas, um monge não se veste como um monge para ir à guerra, e tampouco um guerreiro de armadura faz as tarefas do templo aparamentado para a guerra. Se vivesse para sempre com o mesmo vestido de dançarina, o que faria se um dia cansasse de sua beleza de mulher? Pois lhe afirmo preciosa filha, que a beleza física até ela cansa a mente quando essa percebe a verdade do mundo. Por acaso gostaria de ser uma vestimenta, ou de ser aquele que é o dono da vestimenta?

A bela mulher baixou a cabeça em reverência, e agora acrescentada da formosura do conhecimento, se retirou da presença do sábio homem.

domingo, 23 de setembro de 2012


 
 
 
Percepções

 

Com seus olhos de tristeza, ele só conseguia ver um prédio deprimente e sombrio. Mesmo este sendo moderno e recém-construído, parecia embotado. As paredes eram nuas de sentimentos. Com seus doze andares, a pouca luz que se podia divisar, só permitiam adivinhar as grandes janelas de vidro fosco, onde algum movimento, às vezes era perceptível: sombras como espectros, mãos balançando, cabeças em negativa. Orlando chegou primeiro ao prédio. Não queria vir, estava ansioso, entretanto, poderia reverter as coisas. Tudo na vida tem um jeito. Ainda poderia salvar a situação. Apesar dos seus olhos terrivelmente tristes.

Ela por sua vez era quase feliz. E finalmente chegou ao prédio, que mesmo à noite reluzia. De suas grandes janelas de vidro, podiam-se sentir os risos alegres, o som dos brindes de copos de cristal. O prédio moderno e novo resplandecia a noite. Suas cores e luzes e luzes lembravam um belo dia festivo, e de suas paredes desprendiam uma estranha e gostosa energia de felicidade. Fátima estava radiante. Poderia voar se pudesse. Enfim era uma chance de recomeço. Mas por hora, só queria subir até a sala do advogado e resolver a situação.

Da mistura da alegria com a tristeza, saiu algo confuso. Esse casal sempre foi anfibológico mesmo. Nesse processo de acertos e claudicações, muita coisa foi dita, mas a digestão foi difícil, manhosa.  Os dois saíram juntos do prédio, enquanto desciam no elevador, pareciam que estavam invisíveis um para o outro. Um constrangimento alheio parecia um muro a separá-los. Orlando e Fátima. A tristeza e a quase felicidade. Perguntamos se a situação foi resolvida, se houve sequer uma pequena luz que brilhasse nessa escuridão de sentimentos. O caso não foi resolvido, e pior, os dois saíram mais embolados do que antes. Enroscados como duas serpentes no acasalamento. Mais apaixonados do que antes. Embora, não quisessem admitir isso um para o outro. Coisa estranha é a relação humana. Quando no escritório do advogado, Fátima estava decidida a começar vida nova, a formalizar o divórcio. Quando viu Orlando, suas pernas fraquejaram, sentiu um frio na barriga que quase fez subir o jantar pela goela à cima. Ele por sua vez, ao perceber que ela não decidiria nada naquele momento, sentiu uma emoção difícil de descrever, sentiu que ressurgira das cinzas, como uma fênix, esperançoso, embora as percepções dos dois continuassem diferentes, individuais. Mas quem disse que o amor é a visão única? Pensou ele. Eles ainda poderiam dar certo. Bastasse tão somente, que suas visões fossem claras o suficiente, e tentassem ver bem. Que enxergassem um ao outro em suas visões singulares.

 
 
 
 
O Sábio e o Presidente

 

Era uma vez, em um distante país em nossa imaginação, um grande líder político, amado por grande parte de seu povo, que foi procurar um grande sábio, que morava perto de uma montanha nevada que na verdade era um vulcão ativo, afastado da civilização. Ele buscava respostas para uma pergunta que assolava o seu pensamento de político. Passara varias noites insones, e questionara os homens mais inteligentes do seu tempo, mas nenhuma das respostas o satisfizera. Nada para ele parecia fazer sentido, uma vez que, fizera um governo como ninguém havia feito antes, e por isso, se achava acima do bem e do mal. Uma vez que, estava impaciente pela resposta ao enigma que havia proposto, embrenhou-se pelos caminhos ermos, até chegar ao local onde morava o sábio da luz dourada. Ao chegar perto de um casebre de madeira, no começo da noite, aos pés do vulcão, chamou pelo sábio, e então, um velho senhor abriu a porta:

- Quem está ai, que me importuna, bem a hora de meu jantar?

- Eu o outrora governante desse país, o maior de todos, o mais perfeito, o amado pelos pobres, o que nunca erra!

O sábio curioso, uma vez que sabia que tal homem não podia existir, o convidou a entrar. Uma vez lá dentro, o governante sem governo, lhe apresentou uma charada que necessitava de uma resposta direta e perfeita em todos os detalhes. Sem demoras, foi logo perguntando ao sábio ancestral:

- Meu companheiro, meu arguto amigo, a grande pergunta, a que vale mais um governo em meu futuro é:  se um governante fosse tão amado por seu povo, e tivesse tirado da miséria um grande numero de famílias, se tivesse sido considerado uma das maiores esperanças do mundo no combate a fome, seria justo se esse homem tivesse seus amigos perseguidos, seu filho escorraçado, e sua integridade moral posta em prova, ainda mais que representasse a esperança do futuro de seu país? Seria licito que seus opositores usassem esses fatos para destruir esse tão bondoso governante?

O sábio esboçou um sorriso e pegou o governante pelos braços perguntando:

- Meu filho só posso responder que não e sim.

- Mas como meu sábio, como assim?

- Não se a verdade estivesse com o governante, e sim se a verdade estivesse longe dele. O que sente pelo seu povo?

- Eu os amo!

- Como você ama seus governados?

- Como um pai ama seus filhos. Procuro dar-lhes tudo aquilo que lhes foi negado, alimentação adequada, instrução merecida, e um futuro digno!

- Pois imagine você, que um governo de outro país que não é perto de nós, criou uma lei que não permite que os pais conduzam a ação de seus filhos, que mesmo os amando, estão proibidos de sequer repreendê-los, quanto mais dizê-los o que fazer. Agora pergunto, quando esse filho erra, a quem deve prestar conta? Uma vez que, a justiça só se pronuncia quando provocada, e aos pais é proibida o controle sobre os atos de seus descendentes?

- Mas isso é um absurdo! Se o pai ama seus filhos deve procurar de todos os meios a seu dispor, que não caiam em erro, que obedeça a lei acima de tudo! -disse indignado o governante.

- Mas se esse filho corresse o perigo de ser preso, o pai não poderia se exceder em seu zelo, e tentar livrar seu filho, com todos os meios que dispõem, mesmo que burle a justiça?  Tal lei, que mencionei, não serviria para impedir excessos como esses por parte dos pais?

- Eu como grande governante digo que jamais, permitiria tal lei, e que também nunca permitiria que meu filho agisse assim!

- Nem mesmo um amigo muito chegado e companheiro de jornada?

- Muito menos estes!

- Então meu bom homem, o governante e o pai teriam as mesmas preocupações e responsabilidades?

- Sim meu grande sábio.

- Então respondi sua pergunta.

- Como assim? – interrogou o governante curioso.

- É sabido que, um grande governante, mesmo quando imbuído de verdadeira intenção de ajudar seu povo, pode se imbuir de tal confiança e certeza de predestinação, que o próprio amor lhe venha a ser usado como instrumento de império. Que talvez venha em seu auxilio, aqueles de seu povo, que preferem, em sua ilusão, que amem mais a figura de seu governante que a lei e a justiça. Muitos são aqueles que se apaixonam. Muitos são que estão dispostos a passar por cima da lei e da justiça para verem a concretização de seus sonhos. Mas perguntamos, onde começa o sonho e onde termina a ilusão de sonho? Onde começa a nossa certeza sobre o bem? Quem seria a favor de um grande governante, mesmo que servisse aos ditames do mal? Que seu povo desse a ele e ao seu partido político, salvo conduto para que se perpetrassem as maiores arbitrariedades? Pois respondo a tudo que me foi questionado com esse simples pensamento: Não são os reinos, nem mesmo o poder do povo, que deve se guiar o homem, mas apenas a verdade. Porque a verdade o libertará. A verdade é tudo que importa. Sem a verdade, somos presos da ilusão de verdade, e somos até contra ela, quando contrariados em nossos sonhos. Ninguém suporta ver suas ilusões destruídas. E se revoltarão contra as instituições e derrubarão todos os livros da lei, para que subsista a figura de seu deus: O bom governante que não admite que possa errar. Serão terríveis mãos de ferro a esmagar aqueles que contrariarem os seus sonhos, mesmo que sejam quimeras de sonhos.

Dito isso, o pequeno e velho sábio da luz dourada, aquele que morava em um casebre perto de um vulcão, se despediu do homem que achava que nunca poderia errar. E foi continuar o seu jantar.   

domingo, 2 de setembro de 2012


 
O Arrependimento Homicida

 
A última ceia de perfídias. O hospital central. É na ala psiquiátrica que vamos, mais exatamente ao quarto quinze. No quarto, Jose Ribamar acaricia um urso de pelúcia. Ele parece estar meio adormecido, mas na realidade está lembrando. Existem coisas que quer lembrar avidamente, mas existem outras coisas que quer esquecer com toda sua força. A própria luz solar que penetra no quarto lhe trás imagens do passado: o primeiro dia na academia de policia, o estande de tiros, a farda cinza azulada, e as cadencias marciais. Dentro desse caleidoscópio mental, coisas terríveis afloram. Ele fecha os olhos para esquecer. Mas não adianta. As imagens invadem o espaço além dos seus olhos e se chocam com as paredes fazendo um som de estrondo. Nesse processo ele começa a chorar às vezes bem baixinho num choro de alivio e às vezes com gritos de desespero. A culpa o consome vivo. Há um fedor pegajoso, que ele sente, ou pensa sentir. É um odor de morte. Por mais que se banhe, que limpem o quarto isso o acompanha a todos os lugares e isso é pior que os risos que pensa escutar. O som de tiros disparados vindos do nada. Algumas vezes em um reflexo condicionado, abaixa a cabeça rapidamente, como uma ação para se livrar das balas que zunem pelo quarto vazio. O tenente Daniel um jovem medico de vinte e oito anos, procura acalmar José que está agitado, o sargento parece ver coisas. O medico pergunta se ele tomou o remédio, ele diz que sim e fecha os olhos.

A primeira morte sombria. É isso que está lembrando agora. Ele se vê no beco da favela no complexo do alemão. Ele é jovem, ainda um soldado. Eles são cinco de um grupo total de sessenta, que naquele dia sobem o morro em represália a um comboio do mal; essa investida dos traficantes rendeu cinco mortes de inocentes lá em baixo. Os cinco policiais de coletes a prova de bala estão carregando fuzis automáticos e pingam de suor, o sargento do dia grita. “tem gente correndo na laje!” a tensão aumenta assustadoramente, José é impelido pelas costas por um mais antigo:

-vamos lá garoto. Aponta para o alto. Tá vendo? É um soldado! Tá vendo a ponta do fuzil?

-não é não. É uma criança com uma vassoura!

-mas você é panaca mesmo. Ele vai fugir, atira, agora!

-mas é uma...

-atira agora seu merda!

No som do tiro, José abre os olhos. O jovem médico está olhando para ele, lhe oferece um copo d’água, o tenente pergunta como ele está se sentindo, o sargento olha pelos cantos dos olhos. Na porta meio aberta, ele vê um vulto bem nítido de um garoto de seus catorze anos com a cabeça estourada, a face suja de sangue coagulado. Essa imagem dura uns segundos. E então José se deita na cama e vira para a parede, para não ver mais nada.

Para uma alma que quer salvar-se do esmagamento celeste, esse sentimento é um peso que não pode ser medido. Esse, o peso da loucura, em um desfile surreal e humano. No diagnostico de esquizofrenia, colocaram em letras bem grandes: acessos de paranóia e delírios. Mas José não entendia muito bem disso, ele só sabe que nas viaturas, no quartel, e até em casa, pessoas estranhas vinham falar com ele, e o mais estranho, e que essas pessoas lhe eram familiar, de alguma maneira as via. Uma vez no quartel ele chamou um colega:

-ei Romário. Quem deixou esse neguinho entrar?

-que neguinho homem?

-aquele que está ali perto da parede! Ele tá todo sujo! Tá sujando tudo!

-mas do que você tá falando, não tem ninguém ali!

E então as visões começaram a ser mais sangrentas e inusitadas. Um dia estava à paisana em um banco, de repente sem mais nem menos puxou do revolver calibre trinta e oito que estava na cintura, começou a gritar com alguém invisível, o banco estava lotado de pessoas, a situação só foi contornada por que um capitão o reconheceu, e conseguiu acalmá-lo.

“Não me obrigues ao beijo do ouro ardente e o preço do lingote frio”. Era sempre isso que dizia quando alguém o contratava para algum “serviço extra”. Havia lido essa frase em uma revistinha em quadrinhos, achava que era do faroeste americano “Tex”, ou outra qualquer, mas achou legal a frase, e começou a usá-la como uma piada irônica, isso foi antes de ficar realmente doente, quando já não conseguia se controlar. Uma noite no hospital, quando o jovem médico veio vê-lo José estava com um olhar parado e balançava o corpo levemente em um embalo de segredos:

-doutor.

-sim sargento, o que é.

-o senhor já matou alguém.

-não José. Eu sou medico lembra? Eu salvo vidas ao invés de tirá-las.

-eu já. Muitas pessoas. O senhor sabe quanto vale um neguinho?

-não.

-uma vez eu cobrei dez grades de cervejas. Será que foi muito?

-o que você acha? Quanto vale uma vida? Por acaso isso lhe fez algum bem?

-não. Eu não consigo entender como pude fazer isso. Eu lembro que, nem tomei as cervejas. O cara morreu antes de me pagar.

A forma empenada. Ele começou a vê-la pelos cantos do hospital da policia militar. Vinha andando, imagem distorcida, caminhava quando todos estavam dormindo. Esse vulto chegava perto dele e fazia cobranças absurdas! José reconheceu o rosto, era do traficante “Toinho de Duque de Caxias”. “O que esse maldito queria? Eu o matei há oito anos!”. José fugia dele, Corria pelos corredores, “como é que vou arrumar uma motocicleta para você? Você tá morto! Vai amolar o diabo!” O revolver seco e o sangue profundo: essas duas imagens não fugiam de sua mente, aquela foi uma morte demorada, o cara agonizou durante duas horas. Que noite.

Alguma coisa Corroia sua alma. O naufrágio da alma. José estava arrependido de tudo que fizera, mas eles não entendiam, continuavam a persegui-lo, a cobrar, traziam coisas estranhas, o ursinho de pelúcia desapareceu, José acreditava que alguns desses malditos haviam roubado o ursinho, ”eles só querem me sacanear.” Pensava enquanto comia o seu almoço: purê de batatas com carne moída. Parecia um “presunto” que vira uma vez.

Promessas cavernais são proferidas. No segundo dia de carnaval, Jose estava aflito. Logo depois que acordou, percebeu que o quarto estava cheio, estava ali o homem da barraca de angu, o soldado Matias forte e gago, cinco moleques que haviam sido levados para “o aparelho de microondas”, o juiz da comarca de Campos, a bela moça de manguinhos, dançando feliz um samba, o carrancudo “rato velho” cheios de correntes de ouro, O menino da vassoura e outros meios nebulosos. José escondeu a cabeça debaixo do lençol, mas não adiantou, eles ficaram o carnaval todo. O jovem médico voltou na quarta feira de cinzas, e procurou os relatórios e as prescrições:

-enfermeiro!

- estou aqui tenente.

-esqueceram de dar a medicação ao paciente do quarto quinze.  Ele passou o carnaval todo careta?

-Eu também estava de folga tenente.

-será que o José está vivo?

O tenente encontrou o seu paciente deitado no chão, pratos e comida espalhados pelo quarto, o travesseiro e o lençol estavam rasgados, o corpo estava só de cuecas e ele estava todo urinado. O medico balançou a cabeça. “vou dar o remédio agora.”.

Jose disse para o doutor que alguém estava tentando “contratá-lo”. Era a lembrança mais nítida daqueles dias, fora a vontade de vomitar, até que tudo correu quase normal:

-doutor o quarto está sujo de sangue?

-não José. Por quê?

-aquela gente toda machucada e pingando. Eu pensei que tinham sujado tudo.

-então a festa foi grande, em?

Dois meses depois um novo “personagem” entrou na vida de Jose. Uma jovem e sensual mulher lhe visitou. Ele a via meio turva, enevoada, mas o que ele mais estranhou foi que ela tinha um rosto que lembrava sua mãe:

-quem é você mulher?

“eu vim te ver. Mas você não parece muito feliz. E os seios, você gosta?

-o que você quer afinal? O enfermeiro já vai chegar.

“você não sabe? Sabe sim. Sabia que sou sua mãe? Ou você esta vendo uma sombra? Ou você prefere um cachorro?”

-não! Não se transforma não! Estou com medo! Você vai me morder! Socorro!

“está bem. Pronto. Eu sou uma mulher de novo.”

-por favor, vai embora!

 

Essa foi à fase dos amores sepulcrais. Os delírios eróticos ganharam em intensidade e estranheza. Eram arrepiantes. Bichos e pessoas se misturavam, objetos cotidianos ganhavam vida e mortos pareciam ganhar a sua intimidade com sexo. Decidiu-se mudar o medicamento, e por algum tempo o sargento José teve uma relativa paz. Ficou apenas o aperto no peito, um sentimento profundo de angustia. Como alguém sem conhecimento psiquiátrico poderia dizer que, esse paciente estava apresentando alguma melhora no quadro clinico? Às vezes aparecia alguém, vindo não se sabe de onde, uma sombra, e dizia que ele estava bem, e então ele acreditava, José estava mais calmo. Em alguns momentos poder-se-ia dizer que ele estava até feliz. Talvez a mudança na medicação tenha surtido algum efeito. O fato de nota nesse período foi à visita do filho de José Ribamar, um rapaz alto e magro, de óculos pretos:

-oi pai. Como é que o senhor estar? O medico nos disse que o senhor tem melhorado.

-oi filho! Na verdade estou me sentindo muito bem. Dentre em pouco vou poder voltar à ativa. Eu recebi até uma proposta de serviço!

-ah foi? E que proposta é essa? Quem fez? O doutor não disse nada sobre uma alta medica!

-isso porque o tenente é muito discreto. Ele não gosta de espalhar noticias. Principalmente porque ele sabe que esse meu “serviço” é sigiloso, é da policia. Entende?

-tá bem pai. Tá bem.

No outro dia o filho voltou ao hospital com uma sacola de frutas para o pai. O rapaz se encontrou com o jovem médico e os dois foram para o quarto quinze. Quando abriram a porta José está de pé no centro do quarto vestido com o seu antigo uniforme:

-o que você está fazendo vestido de uniforme José?  Cadê o enfermeiro?  Eu mandei ele te medicar! Mas que coisa rapaz!

-não se preocupe doutor. Eu estou pronto. Eu fui contratado para fazer um serviço, ou melhor, um trabalho cívico, eu sei que eu vou ganhar muito dinheiro - dizia com os olhos vidrados - vou ficar rico. Meu filho você também esta aqui! Você vai ficar orgulhoso de mim! Eu fui incumbido de “apagar” o pior bandido de todos, e esse realmente é merecedor da morte, e eu estou feliz de fazer esse serviço – falando rapidamente como se o tempo fosse evaporar - vocês me entendem? Ele merece! Pela primeira vez vai ser um que realmente merece!

-mas pai...

-não se preocupe meu filho. Nesse pedaço de papel na minha mão está o nome do canalha. Pode deixar que eu não vou falhar. Eu não vou decepcionar vocês!

 

Jose atirou o pedaço de papel ao chão e fez um esforço para deixar o quarto. Ele queria ir. Ele precisa ir. Para fazer “o serviço”. Mas eles conseguem contê-lo. Foi preciso a ajuda de mais três enfermeiros para refrear o sargento. Aplicaram-lhe uma injeção de tranqüilizantes e ele foi levado para outra ala acompanhado do filho. O medico entristecido apertou os lábios, pensativo “mas ele estava melhorando! Que lastima!” o jovem médico abaixou a cabeça e viu um pedaço de papel. Pega. Ao abri-lo estava escrito com a letra do sargento: alvo José Ribamar.

E foi essa, a desesperada tentativa de uma alma de alcançar algum tipo de redenção. Para tentar consertar as coisas, de punir a si mesmo por tantas desgraças. Para que uma pessoa perturbada se salvasse da danação eterna. Para que alcançasse o céu espiritual ou que houvesse ainda uma alma, a sua alma a sete palmos de altura, perto do céu imaginado.

 

 

 

 

 

 
 
A Filial

 

- Ronaldo, eu sei que sou o seu chefe, mas eu me sinto a vontade em dizer que não é você!

- Não sou o que chefe?

- Ladrão! Você não é, decididamente, um escroque! Um surripiador, que da desfalques em empresas!

- Obrigado, eu já estava me assustando com o rumo dessa conversa.

- Não que não suspeitem de você. Existem pessoas aqui que acham que você desviou cem mil reais da empresa, imagine, você! Que não sabe a diferença entre balanço patrimonial e balança patriarcal! Esses caras devem estar loucos!

- Eu acredito no senhor, chefe. Ufa...ainda bem...

- E estão dizendo que você usou o meu nome, em varias falcatruas contábeis, é pra gente rir, não é?

- Eu já estou rindo.

- Você conhece a Rosana, aquela gostosona da seção de vendas? Eu acho que todo o boato começou ali. Imagine que acham que você tem um caso com ela, àquela gostosona, e os dois estão envolvidos, são cúmplices nas falcatruas! Que historia mirabolante!

- Ah a Rosana...

- O que foi que você disse?

- Eu disse: logo a Rosana coitada.

- Pois é, imagine você e aquela gostosona juntos! Se nem eu consegui sair com ela!

- Pra você ver.

- O que foi que você disse?

- Eu disse que esses caras devem ter uma imaginação bem fértil mesmo.

- Pra você ver!

 

 

 

 

 

 

 
Acolhimento

 

- Você gosta de crianças não é Valério?

- Claro minha querida, um dia teremos os nossos. Só um momento, deixe-me ler essa reportagem no computador...

- Mas você gosta de bebezinhos ou de crianças já crescidas? Eu ouvi dizer que são praticamente a mesma coisa, que o que vale é o amor.

- Eu sinceramente não sei. Eu acho que você tem razão. Eu acho.

- É que crianças crescidas não precisam trocar fraldas, não choram a noite, não tem aquela interminável fila de mamadeiras para preparar! Você não acha?

- Você está tão estranha. Você está bem?

- Eu só estou conversando.

- Sei. Você quer dizer alguma coisa, eu te conheço.

- E eu preciso dizer o que afinal?

- E eu sei lá, você é que esta estranha!

- Só porque falei em crianças?

- Não foi o que você falou, foi mais um ton estranho na sua voz.

- Como assim?

- Sei lá, como se quisesse alguma coisa, o seu aniversario já passou lembra? E falta um pouquinho para o natal.

- Mas você é tão insensível com as coisas, não sei por que eu estou com você?

- Mas o que foi que eu disse dessa vez?

- Nada, só que não gosta de crianças!

- Mas eu não disse nada disso!

- Desculpe, eu sei, conheço você. Sei que gosta de crianças!

E assim, Patrícia satisfeita soube em seu coração, que o seu filho, aquele de onze anos de idade, um fruto oculto quase maduro de um antigo adultério, poderia sair das sombras para a luz do sol. Para os olhos de Valério. Em dezembro. Perto do Natal. Bem próximo do casamento.

 
 
O Fio

 

- Os senhores são os pais da criança do quarto 302? Eu sou o Dr. Lima, os senhores estão confortáveis?

- Eu sou a mãe Silvia, esse é o meu marido Nunes. Estamos tão contentes porque nosso filhinho apresentou melhoras!

- Os senhores foram informados dessa melhora na noite passada, não foi mesmo?

- Sim, mas o outro medico praticamente nos garantiu que o nosso filho em breve voltaria para casa. Não é isso Doutor que o senhor veio nos dizer?

- Na realidade eu fui escolhido entre os médicos para conversar com os senhores. Sobre a real natureza do caso do seu filho.

- Ele vai ficar bom não vai? O outro medico garantiu que...

- O que eu quero dizer na verdade é que temos que esperar pioras nas próximas horas. Dada a natureza do caso de seu filho. Estamos fazendo tudo que é possível por ele, queremos que vocês fiquem cientes de tudo que pode acontecer, e de nossos esforços em prol de seu filho.

- Isso quer dizer que ele vai ficar bem não é! – disse a mãe como se a esperança fosse à incompreensão do mundo.

 

 
 
 
 
A Garrafa de Vinho
 
Diante do extraordinário o maior bem que uma esposa pode ter é um marido compreensivo, compassivo e cansado. Erasmo chegou às dezoito horas, como todo dia após o trabalho. Encontrou a pia cheia de lousas sujas e uma garrafa de vinho aberta. Ouviu barulhos vindos do quarto do casal. Chegou à porta e deparou-se com sua esposa de camisola:

- Porque você está vestida desse jeito, já está com sono há essa hora?

- É eu estava tirando um cochilo depois do almoço.

- Mas já é o princípio da noite mulher. A pia esta cheia de pratos sujos. E porque abriu a garrafa de vinho, deu prá beber agora?

- Bebi só uma taça.

- Quase uma garrafa!

- Ora, eu não posso beber um pouquinho agora?

- Pode o fígado é seu. Mas é segunda feira ainda.

- E você não tinha reunião hoje depois do trabalho!

- A reunião é na quarta feira mulher, como você é esquecida!

- A é? Mas que memória de bactéria!

- Ta certa! Acorde, tome um banho, que hoje estou com vontade!

- Como assim com vontade?

- Com vontade mulher. Com vontade de pimbá!

- Mas você não ta cansado?

- Que manê cansado! Eu estou é com a corda toda!

- E a sua coluna não está doendo?

- Eu tô é ficando broxa com tanta pergunta!

- Então vamos deixar para outro dia que eu é que estou morrendo de cansada.

- Perai, como cansada, você acordou agora, dormiu a tarde toda, você esta doente?

- Pensando bem, eu não estou me sentido bem!

- Eu coloquei a caixa de remédios no armário, deixa que eu pego.

- Eu acho que vou desmaiar!

- Meu docinho de rapadura, o que eu faço para você ficar boa?

- Não se aproxime desse armário! Só a idéia, de ver essa caixa de remédios, me deixa mais doente.

Erasmo sorrindo e feliz pegou a esposa pela mão e pediu a ela um pouco de vinho que sobrou na garrafa, e foram para a cozinha. E no fundo do quarto, surge o sobrenatural. Dentro do guarda roupas, uma visão estranha, uma criatura diferente, abria a porta.

 

 

 

sexta-feira, 31 de agosto de 2012


 
O Chafariz das Almas

 

Elias Ribaldo agora sóbrio se via em um aquário silencioso, em sua cabeça, é lógico. Aquela fonte era a certa. A que foi indicada como a que lhe daria a esperança de transformação. Faria tudo certo. Cumpriria as suas promessas. Tentaria, ou melhor, faria o ritual, que o homem havia ensinado. Ali começaria a sua árdua viagem dentro de si mesmo. Ele se lembrava do curandeiro que lhe aconselhara a procurar uma fonte na cidade que tinha poderes curativos e mágicos. Foi depois de ter tentado tudo. Os alcoólicos anônimos as praticas da medicina oriental, a fito terapia, até um terreiro de umbanda. Quando já estava quase perdendo as esperanças, conheceu Umbu Cajá, um pajé do alto Solimões. De cocar e tudo. Mas esse índio tinha um estranho sotaque, que ele não conseguia atinar de onde seria. O pajé havia lhe dito que apenas uma água pura, proveniente de uma fonte antiga, de leito de um determinado mineral, teria a força para curá-lo, fazendo com que o seu sangue reagisse à mudança bioquímica causada pela bebida. Mas ele disse também, que essa mudança seria espiritual. Dentro do entendimento que Elias tinha com relação a sua vida. Seria rápido. Com uma resposta simples e direta.

Com essas idéias na cabeça Elias saiu à procura deste misterioso chafariz. Foi informado que esse monumento tinha sido construído na Europa no inicio do século dezenove. Que foi transferido para cá a pedido da família imperial. E foi colocado no centro da cidade. Que anteriormente, até o inicio do século vinte ele estava incólume, com seus mil e quinhentos quilos de bronze. Com um desenho harmônico de dois meninos nus segurando uma jarra, de onde jorrava uma água cristalina. Com o passar dos anos, as reformas continuas, o replanejamento urbano, a obra do tempo, a ação de ladrões, haviam transformado essa jóia da técnica de construção de chafarizes, em uma acanhada torneira. Um lugar público onde se lavava roupas. O único sinal que uma vez existiu algo assim, indicando o lugar exato do monumento, era uma marca gravada no cimento, era o de um rouxinol segurando no bico um galho de louro e uma letra “b”, na folha principal. Pelo menos, era isso que Umbu Cajá havia lhe dito. Mas pensando bem, como ele havia descoberto tudo isso? Com certeza fazia parte do repertorio de informações dos pajés do alto Solimões. Ou ele teria conseguido essa informação por meios sobrenaturais.      

 Depois de muita procura e chateações, Elias chegara ao chafariz. Ali estava à pequena torneira, com o desenho que ele, o pajé, havia indicado. Relembrou a estória que o curandeiro lhe contou sobre as propriedades da água desse chafariz. Mas como? Ali só via uma torneira enferrujada que dava a uma banheira e o chão verde de musgos e sujeira. Em sua visão idílica, havia imaginado outra coisa. Algo mais grandioso. Mas o que Umbu havia dito mesmo? Sim, “abra a torneira”.

Quando abiu a torneira, ouviu um barulho de algo querendo escorrer. O barulho persistia, mas não caiu nem uma gota de água. Ao invés do liquido incolor, Elias começou a sentir uma sensação na barriga. Logo se transformou em uma sensação suave, mas indescritível. E isso aumentou até chegar a sua mente. “Onde tombou uma alma jovem”. Ele sentia isso, pressentia os vultos. E começou a ver imagens, fragrâncias e pensamentos alheios. O brilho das flores. O jorro da água límpida como um jarro de cristal em sua mente. Existia magia ali. Algo sem resposta pragmática. A alma do mundo tinha ali o seu pequeno significado. Elias guardava os seus excessos viciosos com zelo, agora era momento de se livrar deles. Tencionava beber da água, e viajar no vinco do mundo, em rebanhos de luz, como haviam descrito para ele. Essas palavras misteriosas para ele faziam sentido. Queria ir, aonde almas vacantes iam ao léu. Quando iam ao encontro de suas respostas.

O pajé havia dito também, para que ele fosse curado era necessário cumprir três desafios que lhe possibilitaria a liberdade: ter a capacidade de sentir vergonha; ter o direito de chorar; e retribuir um favor. Para qualquer pessoa isso seria relativamente fácil. Mas não para ele. Como iria fazer isso? Não sabia por onde começar. Era verdade que por mais que tentasse jamais havia sentido vergonha ou remorso do que fazia nessa sua vida tão cheia de percalços. Considerava-se uma pessoa boa normal, mas era orgulhoso como ninguém. E também, havia levado sua esposa e seus filhos quase a miséria total, por causa da bebida. Chorar? Nunca havia lembrado desse fato. Sentia-se incapaz de verter uma lagrima que fosse mesmo aos piores momentos que sofrera isso não tinha acontecido. E também, que favor era esse que teria que retribuir? Não conseguia imaginar o que seria.

 

Com as faculdades proporcionadas pela fonte mágica, súbito relembra a sua vida da prosperidade à miséria causada pelo alcoolismo (onde tombou uma alma jovem). Como fizera sofre a mulher que tanto amava. De como envergonhou os filhos diante da sociedade e da historia da família. Mas que sina. Como se sentia mal, o pior inseto, diante da constatação. De repente, uma imagem nítida lhe apareceu diante de seus olhos interiores. Veio não se sabe de onde, uma lembrança de um dia passado, clara como uma curta metragem de cinema. Foi um dia após uma recepção regada a vinho e champanhe, tinha feito o maior escarcéu, tinha derrubado uma mesa, sujado o vestido de uma convidada com vinho. Até que muito delicadamente, o retiraram da festa. Depois disso nunca tinha se lembrado do que havia acontecido. Apenas que havia acordado no hospital seminu e machucado. A enfermeira havia lhe dito que ele tinha sido assaltado e deixado a própria sorte no meio da rua. E então a vivida imagem lhe deu as respostas que procurava:

“Começou a lembrar que, depois que saiu daquela festa, bêbado e aborrecido, foi a um bar e se encontrou com dois amigos. Ou que pensava serem amigos de verdade. Em uma visão ampliada, conseguiu observar quando o seu amigo Marouço lhe colocara um comprimido no copo de conhaque. Os viu levarem seu corpo desacordado a uma viela escura. Lá sem um mínimo pudor, a menor decência, o estupraram, roubaram seu dinheiro e parte de suas roupas só para completarem “a brincadeira” que haviam proposto. Riam e debochavam. Com suas almas negras, atiçadas por forças escuras e secretas. Depois de estarem satisfeitos, foram embora abraçados e rindo muito. Foram beber a custa de Elias. Perto dali outro amigo de Elias observava tudo. Bartolomeu. Ele presenciou escondido,toda a barbárie cometida contra o pobre coitado. E pensar que Elias tinha humilhado Bartolomeu por ele ser pobre, humilde. Em um dia de bebedeira havia agredido o amigo por nada. Por nada. As coisas acontecem de maneira estranha. Bartolomeu pegou o amigo, e o levou ao hospital.”

O choque do reconhecimento. O choque foi vergonhoso e cruel. De sua condição de alcoólico inveterado. Então pela primeira vez na sua vida, havia sentido vergonha. Mas foi um sentimento atroz. O seu peito parecia que ia explodir. Todo o seu ser, tudo que tinha sido, e o que seria, queria perecer. Apagar e desaparecer do mapa do mundo. Diante de toda essa angustia, de tudo que viu e sentiu, não aguentou. E então pela primeira vez em sua vida chorou. Em um pranto copioso e profundo.

Quando já não havia lagrimas para chorar, teve uma visão do espírito do chafariz. Uma forma de luz, sorridente. Essa luz só ficou ali. Acalentando. Abraçando. Curando. E Elias se sentiu melhor. Mais seguro, e compreendeu o que significava aquela magia. O poder por trás de tudo que é bom.

Saiu dali e foi procurar Bartolomeu. Ao chegar à casa do antigo amigo encontraram tudo fechado, as luzes apagadas. Procurou saber sobre ele. E um vizinho, um moreno de barba branca, lhe disse que Bartolomeu estava hospitalizado. Sim, sabia o nome do hospital e daria a ele. Elias em desespero pegou a primeira condução que apareceu. Ao chegar ao enorme prédio branco, procurou a atendente e foi encaminhado ao quarto certo, descobriu o amigo sedado. “Não tinham o dinheiro para o tratamento” lamenta a esposa. Elias sorriu, “agora tem” disse. Ainda tinha algumas economias, mais que o suficiente. E em uma tarde ele sem o sentir cumpriu as três promessas, pedido pelo pajé Umbu Cajá.

No finalzinho da tarde, Elias voltou ao “chafariz”. Ele se sentia renovado. Sentou perto da torneira para meditar. Que interessante, ele não sentia vontade de beber. Permaneceu ali por algum tempo. Olhos fechados. Só em silêncio. Sentindo algo novo. O corpo renovado. O mesmo corpo, mas novo, na vontade e na esperança.

Quando a lua já começa a sair, e quando o barulho dos carros vai diminuindo, ele sente uma pessoa se aproximar. Para sua total surpresa é sua ex-esposa. Aquela mulher que ainda ama. Ela também está surpresa, mas confessa que ela sempre vai nessa bica, que alguém disse para ela que era uma fonte mágica. Para fazer uma promessa para ele, Elias, ficar curado. Nessa prova de amor. Nessa “coincidência” fantástica eles se abraçam. Quem disse foi um pajé? Não. Ela disse que tinha sido um padre junto com um pastor protestante. Que um dia apareceram e lhe ensinaram um meio de livrar o seu marido do vicio de beber. Disseram também, que Deus tinha estranhos métodos e caminhos para resolver os problemas humanos. Mas que curioso. Elias explicou tudo à mulher que amava. E então os dois saíram juntos de mãos dadas. Espantados com a força que existe por trás do amor. Agora sabia como. Se soubesse como era simples. O seu espírito levava o seu corpo renovado e sua esposa, já na mesma flor de sonho. Vendendo retidão.