Escrita de Índio
Naquele momento, as palavras viam com
dificuldade para Guaci. Ajeitou o cocar e guardou o arco debaixo da mesa. Pegou
a caneta e começou a escrever no corpo. Será que deveria começar dos braços
para as pernas, ou da barriga para o rosto? Estava indeciso. Não conseguia se lembrar do tema, ou melhor,
para quem estava escrevendo mesmo? Pensou logo no seu sagüi. De como ele era
feliz. Ele tinha mãos igual gente, mas não precisava mandar recados para
ninguém. Que sorte a dele. Bem, ele recordou-se de que precisava minutar para o
chefe Juruá. Queria contar ao amigo,
como ele havia arranjado uma esposa japonesa. Pensou um pouco, e começou a
rascunhar pelo braço esquerdo. Ainda bem que não estava suado, porque a letra
sairia meio inteligível. Lembrava-se que uma vez teve que refazer oito vezes
uma petição. Naquela ocasião o seu pai, que não sabia as coisas do homem
branco, o estava aborrecendo, por causa de uma carta de amor para uma índia
caiapó do outro lado do rio. Conseguiu escrever a carta e foi levar o recado
para o pai. Ele esperava que no outro dia as coisas ocorressem de maneira apropriada,
mas na virada da quarta oca, Guaci se apaixonou outra vez. Foi quando viu
passar uma jovem índia de outra tribo, uma estudante que trazia no corpo, um
texto inteligente com uma letra miúda e invertida. Seus olhos viram o brilho, na
pele morena e jovem ele podia discernir umas primeiras palavras de Descartes.
Tudo seriam as mil maravilhas naquela
semana, se um acontecimento enfadonho não lhe tivesse tirado o sossego. As suas
habilidades de redação seriam necessárias para tentar resolver um problema
domestico mas de grande repercussão. No dia seguinte, receberam visitantes
inesperados advindos do outro lado da reserva.
Guaci com seus olhos de carcará, de um escritor experiente, fez uma
varredura nos visitantes. Com a sua técnica, ele começou a esmiuçá-los, a
medi-los em sua aparência e originalidade. Vamos à descrição:
“Eram dois índios. O mais velho tinha o
rosto oval, e ostentava um cocar azul nos lados e vermelho no alto. A sua
expressão denotava certa autoridade. Os rostos pintados nas bochechas gordas
eram de listras de um azul escuro. No seu peito, um colar de pequenas cordas
claras e uma fileira de objetos brancos que lembravam pequenos dentes
pontiagudos, e davam-lhe um aspecto mais feroz. O dorso era igualmente pintado,
por listras verticais intercaladas por faixas finas e grossas. O mais novo
estava logo atrás do chefe, onde se poderia discernir parte do rosto redondo.
Pintado na parte superior do nariz para cima até a testa de azul marinho e
vermelho da ponta desse mesmo nariz indo cobrir todo o rosto ainda o queixo.
Esse jovem índio, em sua vaidade, usava um colar parecido com o do mais velho,
mas trazia também caído no meio do tórax uma pequena faixa de tons amarelados e
vermelhos com dois pequenos detalhes em verde, que realçavam a franja branca do
final. Por fim, em seu dorso podíamos divisar pinturas continua nos dois lados
do corpo”.
Ufa, para que essa descrição extensa? Quantos
detalhes. Guaci adora essas descrições extensas típicas da literatura do
período do Romantismo. Bem, deixa prá lá. Mas o estranho nisso tudo, é que
esses não trouxeram nenhuma escrita consigo. Nem nos braços e pernas ou outra
parte. Guaci se perguntava se esses visitantes eram analfabetos, ou se usavam alguma
tinta invisível em seus escritos. Aproximou-se do mais velho, e enalteceu o seu
belo cocar, a sua expressão de chefe valente e a capinha de telefone celular
confeccionada com pele de jaguatirica. O chefe respondeu-lhe que estavam ali
para falar com seu pai. Guaci então perguntou se eles tinham alguma mensagem
especial para entregar. Talvez uma carta de algum conhecido ou um recado de
e-mail. O velho chefe sorriu para o mais jovem que o acompanhava e disse que
trazia apenas algumas palavras escritas para um velho amigo de muitos anos de
caçada. E que entregaria apenas a ele. Gaci diante dessa recusa educada em dar-lhe,
a saber, de imediato o conteúdo da mensagem, os levou para a oca de seu pai. Pegou
o caminho da lanchonete de Joey Taylor, um americano que vivia ali há muitos
anos. Quando passaram pelo estabelecimento de estilo indígena, sentiu-se logo
um cheiro forte de anta assada, o branco magro, de óculos escuros de surfista
estava tratando alguns peixes, perto dele umas latinhas de refrigerante
coca-cola, no alto a sua direita uma carcaça de macaco temperada com ervas
esperava a vez de ir para o fogo. Continuando o seu caminho e passaram pela oca
da índia gorda, que esbravejava com o marido por causa de uma tevê queimada.
Andaram alguns passos e chegaram à oca do velho “Mão Pelada”. Pelo menos era
assim que todos chamavam o pai de Guaci. Eles o encontraram do lado de fora se
balançando em uma rede de dormir. No reencontro dos amigos, houve muitos risos
e afagos. Mas na hora da conversa os dois velhos se afastaram dos mais jovens e
foi nesse momento que o visitante levantou a planta do pé esquerdo e então o
velho “Mão Pelada” ficou pálido, espremeu os olhos, mordeu os lábios, coçou a
cabeça e chamou o filho com um aceno de mão. O filho se aproximou e leu uma
pequena mensagem na sola do pé daquele visitador onde estava escrito com a
letra minúscula e simples de uma semi-alfabetizada, uma mensagem que parecia
ter sido ditada por alguém mais inteligente do que ela. A mensagem era de uma
mulher:
“A mensagem começava com uma saudação
inaudita, e continuava com lamentações incipientes, de como o velho “Mão
Pelada” sabia de que a muito eles não se comunicavam, continuava com uma
lamúria, segundo o entendimento dela, de que por uma decisão do deus tupã ela
encontrava-se doente e fraca. Já não conseguia colher as frutas. Já não
conseguia cozinhar o biju. Já não conseguia fazer curumim. Então podemos
perceber como estava imprestável para a vida. Já que é assim, esperava que ele
não tivesse esquecido sua promessa de cuidar da filha deles que já era uma
mulher feita, uma vez que a filha não tinha marido, não tinha ninguém. Nesses
termos a velha queria informar que a filha já se encontrava a caminho e que
queria que ele agisse como um pai, dando-lhe o abrigo pretendido. Assim queria
a velha do Biju”.
O velho “Mão Pelada” torceu a cara, e
pediu logo um “rapaz expresso” para mandar uma mensagem rápida e sucinta.
Mandou chamar o pequeno Jaci e pediu para o filho escrever nas costas do
mensageiro com letras grandes, de fonte quatorze, aproximadamente, para que
todos tomassem ciência de sua decisão. Em uma escrita ligeira de bela
caligrafia de Guaci, o velho ditou com as palavras aproximadas a que ele
pretendia, e que o filho tratou de dar um tom menos coloquial e uma versão mais
elegante:
“O velho disse para sua ex- consorte
que realmente, a muito que não se comunicavam. Sabia que a pobre Velha do Biju
sofria, e que a decisão do deus tupã não deveria ser questionada. Entretanto,
ironicamente, ele não esperava encontrar a sua velha ex-mulher, padecendo do
mal da malaria. E que esse mal viesse acompanhado do tão conhecido sintoma do
delírio. Sem duvida o que lhe causava espanto, eram as conseqüências graves que
os tremores originados por um ser tão diminuto como um mosquito, poderiam
acarretar a mente de uma velha. Diante dessa enfermidade, desculpou-a por fazer
um pedido tão eivado de absurdos, desconsiderando o tal pedido de receber “sua
filha” em sua humilde morada, deixando assim por uma questão de educação, que o
vento levasse as pueris palavras dela. Não se preocupou e perdoava essa falha,
de coração. Assim desejava a ela boa sorte e lembrou-a que há muito tempo, há
muito tempo mesmo, não se viam. O que era mais um sinal de que ele não tinha
maiores compromissos a cumprir com essa senhora. Mas, repetia, por uma questão
de bons modos, perdoava tamanho desvario de uma senhora tão idosa”.
O velho tratou de despachar logo o
“menino expresso”, e foram à lanchonete do Joey.
No começo da noite o mensageiro
retornou a aldeia trazendo uma inesperada resposta, escrita na bochecha direita
que descia vertiginosamente pelo pescoço, e que Guaci leu para o pai. Entre
outras coisas dizia:
“Ela afirmava categoricamente que, o
ex-marido era um inconseqüente. E que se a muito ele não fora devorado por uma
onça pintada, deveria dar graças às preces dela e a vontade de tupã. Doravante
as esquisitices e indisposição dele para fazer filhos, a muito custo, fizeram
esta a que ele renegava. Compreendia que, ele agora, deveria estar mais senil e
decrépito, e que com toda certeza constituiria para a pobre mulher que agora
era sua esposa um fardo inútil e sem vida. E que talvez, por isso, a sua
memória estivesse igualmente afetada, após tantos anos de preguiça disfarçada
de alguma doença imaginaria. Porém não devia esquecer o fato de que na tenra
juventude, o pai dela motivado por uma compaixão desmedida o tirou da mata
virgem perto da aldeia de onde eles moravam, e que ele naquela ocasião, o
outrora jovem “Mão Pelada” se encontrava em tal situação de penúria, que estava
a ponto de se acasalar com as fêmeas de macacos aranha. De todo modo, depois
dessa triste passagem de sua vida, deveria se lembrar que não recusou do biju
que ela fazia, a ponto de se empanturrar, e que diante de tudo isso, e de se
esperar um pouco de responsabilidade mesmo de alguém tão afeito no passado a
enganar pobres meninas na beira do rio. Uma vez que, a sua memória se encontre
mais clara e renovada, queria lhe informar que sua filha chegaria a sua aldeia
amanhã. E que agradeceria se mandasse dar uma limpeza na oca e colocassem um
pouco de água fresca no grande pote”.
Ele o velho não podia acreditar no que lhe
era dito. Procurou a sua arma de guerra com os olhos, com pensamentos obscuros.
A insistência dessa velha estava lhe causando coceiras no corpo, a tal ponto
que, mandou a sua mulher lhe preparar um chá de auyasca para que, talvez o seu
subconsciente lhe revelasse o porquê de tantos aborrecimentos. Diante dessa
situação incomum, pegou o “rapaz expresso” pela orelha, e fez Guaci escrever na
perna direita do rapaz e remeter uma resposta apropriada e definitiva. O conteúdo
de tão inusitada resposta era a seguinte:
“Começou de maneira impessoal, chamando-a
de minha senhora. E expos que embora em um passado remoto tivessem se
conhecido, nunca ficou claro para ele o papel que lhe cabia nesse
relacionamento. Uma vez que, era de amplo conhecimento a disposição dessa mulher
devassa, para com os viajantes de todos os tipos e gêneros. Ou por acaso ela
estava esquecida do homem branco que vinha no barco grande, de que ele adorava
provar do seu biju? Sem falar nas imprudentes escapadas para colher ervas e
outros congêneres, no simples propósito de esconder o seu comercio ilícito com
algum ianomâmi mais gordo da aldeia vizinha. Entrementes a paciência e recato
desse ex marido que falava. Ficou lógico para ele que não era merecedor de tal
sina, fato esse que o levou a largá-la. Diante desse pressuposto, o velho “Mão
Pelada” preferia servir de alimentos para as piranhas a concordar com tal
desatino, dava por encerrada essa discussão infrutífera, e informava a mal
afamada Velha do Biju, que a menos que retomasse a razão, informaria as
autoridades competentes, que uma canibal sobrevivente de tempos idos, se encontrava
a plena atividade na região. Diante disso, cria que estavam conversados, e terminava
a carta com os dizeres ‘do Seu agora inimigo mortal’”.
“Mão Pelada” e Guaci achavam que com
essas afirmativas, tudo estava resolvido, e foram dormir. Na madrugada um rapaz
quase morto, chega de retorno a aldeia. Trazia nas mãos uma capivara pelada
onde se via uma mensagem infame, pois uma das maiores demonstrações de repulsa
que algum índio culto poderia receber era o de uma mensagem escrita na pele
acre e disforme de uma capivara nova. Independente do conteúdo de tal mensagem,
pois não haveria maior insanidade do que, mandar um bicho desse desnudo de
pêlos, atordoado, e ainda por cima escrito de cabo a rabo como se fosse um
índio. Toda a tribo se sentiu nauseada. Era como se não houvesse sobre a terra mais
nenhum tipo de decência. E o pior de tudo. Guaci constatou que a leitura da
dita mensagem estava simplesmente inacessível, não se lia nem uma vogal. A pele
do bicho não serviria nem para escrever em leitura braile. Um cego teria nojo
de tatear essa coisa, e nesse meio tempo, poderia sentir fome e sucumbir à
tentação de assar o pobre animal antes de ler a carta. Então o Velho “Mão
Pelada”, diante de tanta falta de compostura, de tanta incivilidade, teve um
colapso psíquico, e meramente foi se agachando lentamente e ficou de cócoras,
silenciando por messes a fio, em estado de choque.
Como anunciado, na manhã seguinte
chegou à aldeia uma mulher baixinha e gordinha, quase nua e de longos cabelos
negros. Ela trazia no ombro um filhote assustado de mico leão dourado, e a
tiracolo dois curumins barulhentos. Toda a aldeia foi receber aquela que fora a
razão de tanta falta de juízo. Apesar de toda balburdia criada, Guaci recebeu a
irmã de braços abertos. Constatou que um dos curumins se parecia com ele, que a
irmã era uma doce criatura. Mas o que realmente sensibilizou Guaci foi um lindo
texto escrevinhado na barriga da irmã. Um trecho do livro “a jangada de pedra”
do escritor português José Saramago, e que talvez servisse para sintetizar
todos aqueles acontecimentos:
“cada um de nós vê o mundo com os olhos
que tem, e os olhos vêem o que querem, os olhos fazem a diversidade do mundo e
fabricam as maravilhas, ainda que sejam de pedra, e as altas proas, ainda que
sejam de ilusão”.