domingo, 12 de dezembro de 2010

Uma Crônica Sobre a Escrita.







Coautor

Não espero. Acomodo-me, sento de forma espontânea, enquanto o relógio na mesa interroga as horas. O meu esqueleto no limbo e a minha consciência na cadeira, procuram, devassam, coabitam e finalmente encontram. É na cadeira de couro que passo a escrevinhar naquele dia. Da cozinha me vem um gostoso cheiro de café preto, feito sob medida para os meus excessos do crânio. Tento resolver de maneira limpa e sem alvoroço a questão das metáforas dos gatos que aparecem. É um texto difícil. Ele quer enganar-me. De quando comecei a escrevê-lo, pensava uma coisa e agora é outro animal. Involuiu até um ser antigo e extinto. As letras são pesadas cheias de pele morta. Do céu vem uma escuridão pré-histórica, de chuvas torrenciais que apagam as pegadas. Não posso perder o fio da estória. Deixar os meus personagens sem mim. Reencontrei as pegadas e as sigo.  Tento também de maneira limpa, resolver o velho problema da polia que emperra na minha cabeça, quando me dou a excessos de metonímia. Ao mesmo tempo em que bebo o meu café perto da cozinha. O sono me cerca como uma matilha na penumbra da sala. Agora vou fazer uma pesquisa para a minha estória. O auto-de-fé que me permito é o escrutínio do pátio em frente ao meu apartamento. É a sarjeta que margeia invisível, os dois lados do jardim. O jardim que é o mundo. Ah. Também pesquiso as rugas dos passantes, e vejo particularidades difíceis de descrever. Seria mais fácil medir o silêncio e ver se consigo ao menos sentir o sossego. Em alguns semblantes, percebo algo diverso. Será o ódio por trás dos pêlos, em uma dança improvável com a gravidade? Assim fazendo, descobrindo esse pequeno segredo divino, fico mais calmo e a polia trabalha de maneira perfeita. Sem perder segundos, domino a folha de papel e subjugo o mal. Destilo o pouco que compreendo do pátio e sua fauna esplendida. Apesar das margens de sarjeta e das nuvens escuras, que se avizinham. Esse é o mundo que criei. Onde mais eu teria essa chance de brinca como um deus? 
                                                     Carlos Bahiense   

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Conto. Um Devedor.







Rodeios Para Dizer Uma Besteirinha

O enfermeiro Mauricio estava tenso.  Como ele diria a ela? Agora estava diante do corpo do velho senhor, e dois homens da pericia em volta do corpo, registravam o delito. Lembrava-se que o sogro naquela manhã estava sorridente, dizer que talvez um pouco aborrecido com a filha seja certo, mas estava resignado e sorrindo. E agora, nada disso tinha importância. O que era uma pequena discussão diante de uma tragédia como aquela? Ele conjecturava que tudo aquilo tinha acontecido por causa de um assalto. Ou não. Pensou melhor sobre essa opinião. Todos sabiam que o idoso gostava de jogar cartas e apostar alto. Que nos últimos tempos, foi enchendo a sua lista de desafetos. Tinha o Zé Argolinha, um cara perigoso e escorregadio. Que também era viciado em jogo, e que às vezes recorria a métodos mais violentos para conseguir o que queria. Esse gostava de cortar a barriga de suas vitimas com uma faca super afiada, só para ver as tripas do infeliz  caírem no chão. Um dia durante uma rodada de poker um quis roubar o outro nas cartas. A manobra foi tão evidente, que os outros dois jogadores ficaram rindo. Foi então que o velho e Zé Argolinha se estranharam e quase saíram no braço. Eles realmente se odiavam. Mas que mundo era esse? Um dia se está vivo e no outro o vazio. Ele desceu as escadas do prédio. No corredor mais dois policiais estavam subindo. Caminhou e encontrou Fátima com o delegado logo na entrada do prédio. Ela o viu e se afastou para um canto. O enfermeiro foi tentar acalmá-la:
- Você está sabendo do que aconteceu, não é?
- Não. Apenas me disseram que aconteceu alguma coisa lá em cima.
- Eu quero que você fique calma, ok?
- Por quê?
- Ora porque toda essa situação é estressante para todo mundo. E você é meio nervosa, não é mesmo? Todos esses policiais a pericia, repórteres é meio estranho.
- Eu estou bem.
- Eu não estou querendo esconder nada, tá bem? Sabemos que a vida é cheia de surpresas, que pensamos que estamos preparados para tudo, mas que na realidade as coisas fogem do nosso controle. Desculpe, eu estou meio nervoso sabe? Minhas mãos estão suando.
- E você está nervoso assim por quê? Aconteceu alguma coisa com o meu pai? Fique você sabendo que sou mais forte do que pensa. Viu? Deixa de rodeios. Estou vendo um movimento danado no nosso apartamento. E nós sabemos que apenas ele está lá dentro. Então aconteceu alguma coisa com ele, eu sei.
- Meu amor, você está bem alterada, tremendo, me deixa medicá-la. Vamos para um lugar mais calmo...
- Daqui eu não saio! Eu estou tentando te dizer uma coisa e você não quer me escutar. Você não está entendendo!
- Mas do que você está falando afinal? Eu quero que você seja medicada só isso. E o que eu não estou entendendo? Se você quer dizer alguma coisa pode falar, eu estou aqui para te ouvir.
- É que pode ser meio chocante.
- Na verdade eu também tenho uma coisa meio dolorosa para te contar.
- Mauricio o que eu quero dizer para você envolve morte.
- Eu também quero te dizer alguma coisa que diz respeito à morte.
- Então diz.
- É melhor você se sentar em algum lugar meu amor...
- Prá que? Para você me dizer que o meu pai está morto, que ele foi assassinado? Não obrigada. Estou bem aqui mesmo.
- Parece que você está em estado de choque. Eu entendo isso.
- Eu estou me sentindo muito diferente do que você acha. Eu sou mais forte e decidida do que você imagina.
- É decididamente você está meio estranha. Você quer desabafar, não é?
- Eu vou te contar um segredo meu. Se depois disso você quiser me deixar e contar para alguém, você é quem sabe, eu não ligo mesmo. O meu pai era um jogador inveterado. Um viciado que só pensava nele! Ele negligenciava tudo. Ele era mau caráter, não gostava de assumir os seus compromissos. E as pessoas não gostavam dele. Ele vivia se escondendo dos cobradores.
- Deixa isso prá lá querida, eu é que tenho que te dizer as coisas. O que importa isso agora? Não adianta esconder mais nada. Você já percebeu que toda essa gente está no nosso apartamento. E afinal, o delegado que estava perto de você não perguntou nada. Não te disse nada?
- Ele estava mais interessado em manter as pessoas afastadas.
- Olha o seu pai não sofreu, eu garanto, tudo foi rápido.
- Eu sei que ele não sofreu. Ele levou dois tiros, mas não sofreu.
- E como é que você sabe que ele levou dois tiros?

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Uma Fuga Espetacular.





FUGA DO MORRO DO CRUZEIRO RUMO AO COMPLEXO DO ALEMÃO.

As formas escuras corriam pela estrada de terra. Em sua fuga alucinada se atropelavam se mordiam e se misturavam como impurezas. Rolavam uma sobre as outras como bolas de farrapos: sujas, enfurecidas, mirabolantes e covardes. Eram tantas que na virada da esquina quase antepararam aquela fuga estranha. Por alguns instantes ficaram amontoadas como um monte de bosta. Mas o terror era maior. E como ratos, pulavam e se esgueiravam. Enquanto fugiam dos tiros.
Um grupo de “caçadores” observava “os ratos” por miras telescópicas. O mais alto coçou a cabeça por baixo do boné, e perguntou para o mais baixo:
- Você trouxe a gaiola?
- Trouxe.
- E as cordas? Trouxe aquelas que eu pedi? As de cerdas de náilon?
- Também.
- Pelo o que estou vendo aqui, vamos precisar de um monte de gaiolas.
- Tá parecendo um filme que eu vi. Era uma fuga de um campo de prisioneiros. Do alto um avião caça passava e metralhava a estrada. Tinha um que se arrastava com as tripas de fora. Outro carregava um colega e caia um braço do corpo. Eu não consegui dormir direito depois do filme.
- E qual é o nome do filme?
- Não me lembro.
- Você tomou muita cerveja cara?
- Não.
- Então foi uma pizza estragada.
- Não, eu não consegui dormir mesmo por causa daquela cena. O do cara se arrastando com as tripas de fora, penduradas pela barriga.
- Ei, tá vendo aquele ali? Parece que levou um tiro e está sendo arrastado por um outro “rato”! Deve ter sido um cara do BOPE, eles atiram prá caramba! Vamos atirar naquele que está carregando uma trouxa na cabeça?
- Não. Pode deixar. Essa cena já é mais triste do que aquela do filme. Que futuro esses caras tem? Uma mãe não pode ver um filho assim.
- Assim como? Tá delirando? 
- Como um cara que levou um tiro em uma estrada de terra. É assim que a mãe dele vai ver!
- Mas eles vão aprontar mais confusão!
- É. Mas hoje não. Guarda o fuzil, vamos lá. Até um “rato” pode virar gente.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Conto Vinte e Três. Um Pequeno Conto Nordestino.









O Arcanjo da Chuva

O arcanjo calmo. É assim que era conhecido. De um azul brando. Virginalmente flutuando. Ele era um arcanjo que virou gente. Não foi por ordem superior não. Foi porque ele quis! Era especialista em chuvas e congêneres. Viu que a seca estava braba, e decidiu vir a terra para tentar ajudar. Sempre quis ajudar. E como as suas intenções eram boas, Deus deixou. São Pedro assinou embaixo.  Então Odílio foi. E fez maravilhas.
Isso foi quando ele era jovem. Como ele aceitou ser gente, começou a envelhecer como todo mundo. Ele agora, já velho, em uma feira livre de uma cidade do interior do Rio Grande do Norte, lembrava de suas antigas façanhas. Naquele dia de inverno o tempo estava ingrato. Não havia nenhum sinal de chuva. As margens de um rio quase seco, a fama de Odílio a muito já havia declinado. Ele no passado era considerado o maior “fazedor de chuva” do nordeste. Ainda se lembrava de momentos sublimes. Quando no Piauí conseguira debelar uma seca de dois anos inteiros! E houve um momento no agreste paraibano que conseguiu molhar quarenta quilômetros quadrados com uma nuvenzinha só. Inteiro mar sobre mudos céus. Era assim que via as nuvens. Podia sentir o cheiro delas. Algumas tinham cheiro de frutas. Outras a recifes e estrelas do mar. Podia jurar que uma vez havia sentido em uma cumulo limbo o aroma de enseadas africanas. Por ele ser um membro das hostes celestiais, ele sentia pena da dor do sertanejo. O protetor. O chamavam assim. Uma vez no interior da Bahia após uma bem sucedida prece, quando fez chover em uma terra que a muito não se via água, um menino apareceu com um peixe na mão:
-de onde é esse peixe, menino? -perguntou Odílio desconfiado.
-não sei não. Só sei que ele caiu do céu junto com a chuva, e caiu um montão de peixe. - respondeu o menino satisfeito.
“Isso vai dar confusão” ponderou. Realmente com o temporal, veio uma chuva de peixes que só faltou soterrar a pequena cidade. No outro dia estavam chamando Odílio de santo. Umas velhinhas carolas da cidadezinha organizaram uma procissão ate onde ele estava. Era um mar de velas e cantoria a noite toda. Essa foi de amargar! Ele odiava com todas as suas forças se chamado de santo! Será que essa gente não ia aprender nunca? Ele era um arcanjo! Das hostes divinas entenderam? Mas que saco! Teve que ir embora escondido na boleia de um caminhão. Ele lembrou-se desse caso, e não pode esconder um sorriso. A sorte e a injustiça. Dessa se lembrava também. Uma vez um fazendeiro contratou um pistoleiro para eliminar Odílio. Ele tinha proporcionado o inverno mais farto dos últimos tempos na região. Então por que tudo aquilo, simplesmente não conseguia entender o tamanho do ódio desse fazendeiro? Foi então que soube que o dito cujo havia “encomendado o serviço”, porque Odílio sem o querer o havia arruinado. O esperto vivia da desgraça do povo. Vendia sua criação e seus cereais por um preço exorbitante, indecente até. E com a vinda da chuva todo o seu esquema foi por água abaixo, literalmente. Vamos entender a natureza humana! Embora o pistoleiro tenha se esmerado na pontaria, as balas ricocheteavam no corpo do arcanjo e não causavam nem cócegas. A droga toda foi que esse imprudente havia estragado uma camisa novinha de Odílio. Depois o pistoleiro pediu até uma benção, uma reconsideração de seus atos. Mas quem abençoa é santo. Ele não era santo. Era um arcanjo.  
Essas lembranças queimavam como archote. Que ingratidão dos homens! Na velhice ele aprendeu a se virar. Estava aposentado pelo Funrural. Recebia todo mês o bendito salário mínimo. Nunca tinha bebido álcool. E nunca gostou do jogo. Mulher prá ele só servia para lavar, passar e cozinhar. Televisão então! Achava estranhas essas imagens que falavam. Achava que só diziam lorota. Imagine o homem ir à lua! Como é que podia isso, se lá na lua morava São Jorge? Ah ele não ia gostar disso, não. Imagine tanta mentira dentro de uma caixinha daquelas! O homem ir à lua! Então a velhice de Odílio era uma chatice. Um pé no saco.
Nesse dia, quando se lembrava de todas essas coisas, ele estava na feira da pequena cidade de Ceara - Mirim, perto de Natal. Um saco nas costas pela metade de coisas que tinha comprado. Estava pesquisando o preço da macaxeira, quando alguém deu três batidas com o dedo nas suas costas. Virou deparou-se com um velho baixinho de chapéu de vaqueiro e bigodão. O baixinho o olhou fixamente e perguntou:
-o senhor é o fazedor de chuva? Aquele que chamam de arcanjo da chuva?
-eu era agora eu to aposentado.
-mas quer dizer que não sabe mais fazer chover?
-eu sou um arcanjo. Eu faço água e empacoto!
-mas tá aposentado. Ou seja, já não serve prá nada, nadinha, nadinha?
-e quem disse isso seu bosta! Quem é você afinal? Um papa defunto esperando eu morrer é?
-Mas que nada. Eu sou um ex-fazendeiro. Hoje vivo à custa dos meus filhos. Sim, porque deixei todos muito bem de vida! E eles me devem. Entendeu?
-e onde eu entro nessa historia? Ei você, essa macaxeira é minha, eu vi primeiro! Ta vendo. Você já me deu prejuízo.
-mas nada igual ao prejuízo que você me deu há tempos atrás. Quando você fez chover em certo lugar. Quando botou um homem meu prá correr. Mas como eu tive ódio de você “seu cabra”!
-eu to lembrado da estória. Do pistoleiro e tudo. Quer dizer que foi você. E você quer se vingar agora. Depois de todos esses anos? Então pode começar, porque eu não ligo mais prá nada! Cansei da vida, ta bem? Pode mandar bala!
-mas quem disse que eu vim aqui prá isso? Tá delirando? E afinal não ia adiantar atirar, você não morre de bala. Morte matada passa longe de você! Na verdade eu vim te contratar! Imagine você que o prefeito de Quixadá ofereceu uma grana boa se eu levasse você até a festa do padroeiro desse ano. Que tal? Sócios?
-mas eu sou um arcanjo seu bosta! Como é que eu vou passar por um papelão desses? Não dá!
-mas quem vai tocar na festa é a Ivete Sangalo!
-não dá!
-dois mil e quinhentos reais.
-só pra mim?
-é.
-é que eu to mesmo precisado. Esse negócio, de chuva tá meio obsoleto sabe? Tá bom, eu vou.
-mas só tem uma condição.
-E qual é?
- você vai ter que ir vestido de santo. 
























domingo, 7 de novembro de 2010

Conto Vinte e Dois. Todo Cuidado é Pouco Meus Amigos.







Falta de Sorte
O lugar estava sujo, mas Gilmara não ligava. Estava acostumada com esse tipo de ambiente contaminado. Procurou na bolsa gasta um batom vermelho, enfeitou os lábios e penteou os cabelos quase totalmente brancos. Sabia que não era bonita como antigamente, mas tinha que trabalhar, ou não teria o que comer naquele dia. Mas que falta de sorte. Justamente quando estava prestes a arrumar um cliente, levara um tombo e torcera o tornozelo. Só podia ser obra de um olho gordo. Podia ser uma “zica” da Joana, aquela rival igualmente velha e decadente. Gilmara tinha sido uma bela mulher, ganhara muito dinheiro, mas perdera tudo durante sua vida atribulada. Poderia ter casado, mas não, preferiu a vida fácil, cheia de aventuras. Talvez se arrependesse, mas era tarde. Mas que merda, não queria pensar nessas coisas agora. O tornozelo doía muito e parecia uma bola roxa. Perto dela um encovado gemia de dor em cima de uma maca. Uma mulher de jaleco passou por ela levando uma caixa de seringas epidérmicas. Agora percebia melhor o ambiente e constatou que o corredor de azulejos brancos estava cheio de pessoas doentes, feridas e silenciosas. O cheiro era terrível naquele pronto socorro. Esperava aborrecida que alguém fosse atendê-la. Perguntou a alguém onde estavam os médicos e os enfermeiros. “Mas o sistema público até que não era mal” - tentou ponderar. – “Às vezes tinham inclusive ataduras e mercúrio”. Ela já havia passado por quase tudo na vida, tinha apanhado, tinha sido estuprada varias vezes, uma vez tinha levado uma navalhada nas costas por pura maldade de um cliente. Então para ela aquelas condições não eram tão ruins assim. Estava até sentindo um pouco de sono. Lá fora a noite se aproximava pesada e nuviosa. Os pacientes diminuíam até sobrarem no corredor ela e mais três pessoas enfastiadas. Tudo teria sido excelente, apesar de tudo isso, se um enfermeiro mais prestativo não a obrigasse a deitar em uma maca no corredor. Ela insistiu que estava bem. Ele disse que ela estava pálida, parecia que ia morrer. Nesse cabo de guerra verbal venceu o profissional da saúde. Ele gentilmente lhe deu um copo com água. Ela se acomodou e se mexeu mais um pouco no fino colchão. E quando achava que teria uma chance de tirar uma soneca, ela se sentiu estranha, a cabeça pesou, o seu corpo parecia afunilar-se, e tudo ficou escuro, incompreensível. Mais tarde quando os olhos de Gilmara se abriram, ela estava em uma banheira com gelo, em um local desconhecido. Do lado de seu dorso um grande curativo escondia uma complicada sutura. E naquele momento complexo, ela não sabia que estava sem um dos seus rins.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Conto Vinte e Um. Que Estrada é Essa, Gente?







Essa Mulher é Uma Auto-Estrada
Suas curvas perigosas se tornavam mais insinuantes a noite. Não havia sinalização que pudesse prever os perigos e surpresas daquele corpo.  Era necessária uma boa visão periférica. Certa experiência de estrada.  Uma ousadia de corredor. Um caráter que não visse obstáculos e nevoeiros. Ela tinha a exata noção de seus dotes, e seus buracos eram bem camuflados, qualquer um que transitasse por essa estrada, a veria como uma capa retilínea e uniforme. Macia e confortável. É certo que havia um histórico de acidentes, mas nenhum fatal. Apenas ferimentos leves nos corações desavisados. Como poderíamos dizer? Ela gostava de motoristas intrépidos, mas prudentes. Difícil entender essa contradição. Mas abominava manobras bruscas, a desentendidos e abusos. Houve um sujeito em dada ocasião, que por tanta paixão, sobrou em uma curva. Foi uma tremenda capotada, a lataria do peito sofreu um tremendo baque. Foi um desgaste irremediável.
Talvez essa beldade fosse assim, desse jeito, porque morasse perto daquela estrada de terra batida, acanhada e esquecida. Em uma pequena cidade do interior. Era um lugar bucólico, mas monótono como um pronunciamento presidencial. Por outro lado, ela era meiga como uma marcha lenta. Um dia de sol com ela, então, o sortudo poderia vislumbra a estrada que levava para o céu. O clímax em alta velocidade se fosse o caso. Um dia o irmão dela estava deitado em um descanso coruscante. Estava em uma rede colorida no alpendre da casa e rindo, fazia piada com os seus encantos, dizia que ela precisava de uma recapada, de um projeto de reengenharia, que as estrias apareciam na iluminação dos faróis, só para sentir a sua reação. Logo ela retrucou, disse que suas aduncas eram novinhas, que com ela não existia pedágios, que ele sabia que seus pais, aqueles que a fizeram eram construtores de primeira, que suas medidas e o fluxo eram de transito livre.
Ninguém esperava por essa. Num dia de janeiro, numa sexta feira, uma manobra de bastidores foi criada por alguém da Paraíba, um homem mais assanhado, para interditar aquela belíssima auto-estrada, ao acesso alheio. Aos pais um pedido foi expedido, que anunciava a pretensão de contrair núpcias com aquela obra prima. Tudo parecia que teria esse desfecho. Todavia, uma semana depois ela apareceu escorregadia e sinuosa. Ao perguntarem sobre o “Cabra da Peste”, ela foi tomada de uma raiva ferrosa, um ressentimento angular. Para ela o tal sujeito, se mostrou um motoqueiro irresponsável, que gostava de se atirar na soberba. Por essa postura, a beldade fechou-se em neblinas. Nunca mais queria vê-lo. E realmente esse sujeito insensato nunca mais foi visto por aquelas bandas. Ela continuou linda a desafiar a pericia de outros corredores. Afinal, em suas belas curvas não é qualquer um que sabe guiar não.



quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Conto Vinte. "Me Engana Que EU Gosto."











Despedidas e Tapas

Um
O amor pode ser ao mesmo tempo idolatria e odiosidade? Sempre fiz essa pergunta para mim mesmo, e nunca encontrei uma resposta satisfatória. Um relacionamento amoroso pode acabar como uma atroz despedida sem sonhos. Eu sei que posso estar extrapolando. Mas como ela diria: uma pessoa não é feita de papel. Eu conheci Claudia na rede social “Facebook”. Foi meio uma brincadeira, eu estava consciente de que ela tinha uma personalidade forte. Entretanto ela se mostrou muito pior do que eu imaginava. Palavras afiadas como adagas. Ela começou a me atacar. Primeiro porque sempre queria ter a palavra final sobre tudo. Depois pelo simples prazer. De controlar, de manipular, de morder como uma cadela no cio. Deixa-me explicar melhor. Eis a arma da amada. Ela usa o sexo. Do alto dos seus um metro e oitenta e cinco. Um corpo que é uma maquina. Olhos claros como um rubi perdido. Uma boca que parece uma armadilha, de tão atraente. E o que mais? Ah sim. Ela é muito inteligente. Com uma mente voltada para arrancar todo o seu dinheiro, até o ultimo centavo! Com ela é uma aventura sem sonhos de lírios. Quando nos separamos, ela começou a me perseguir. Tentou acabar comigo quatro vezes. Na primeira vez foi o acidente de moto. É ela sabotou o freio. Na segunda foi o sanduiche. Ela arrumou minha rede, me deu um perfume de presente, e depois me serviu um hamburg envenenado. Eu só acordei no hospital. Depois foi a facada. Essa pegou na mão. Mas ela queria me acerta no pescoço. E enfim uma tentativa mais sutil. Ela criou uma “estória”, nessa eu realmente quase danço. Nessa estória inventada por ela, eu era o amante ardente de Silvia, uma linda esteticista, uma conhecida nossa que era totalmente devotada à família, ao marido e aos dois filhos pequenos. O toque de perversidade, foi arquitetar a coisa de maneira que Walter o marido dessa moça, acreditasse piamente nisso. Ela forjou fotos, conseguiu introduzir mensagens de email no notebook de Silvia. Por fim, eu quase levo um tiro.  Querem mais? Mas vocês são meios sanguinários, não?!


Dois
Desfalece a noite. No condomínio fechado Claudia se encontra com Renato o gordo advogado, meio homossexual, diga-se de passagem, o amigo perseverante. Com angústia fria. Era assim que Claudia queria fazer. Uma vingança completa. Ele teria que sofrer:
-esquece isso Claudia. Você é linda, rica, qualquer homem quer uma mulher assim. E também ele está em outra. Eu soube que ele nem lembra mais de você!
-mas ele tem que lembrar. Ou você acha que vou deixar barato? Ele me deve.
-o que ele te deve? Você arrancou tudo dele! Praticamente deixou o pobre coitado só na tanga. Você está esquecida que fui eu o arquiteto de todo o processo, do litígio? O que você quer mais? O cadáver?
-e porque não? Ele ainda me deve. Odeio esse babaca.
-hum... Estou achando que você quer uma coisa que não pode ter. Tem certeza de que estamos falando da mesma pessoa? Ou você ainda está com o periquito amarrado?
-lá vem você com suas teorias sem sentido. Eu só quero que ele sofra. É pedir demais?
Diziam as más línguas que Claudia nutria uma paixão avassaladora por Eduardo. Mas que ela nunca admitiria para ninguém esse fato. Cada vez que ele era visto com uma mulher. Ela só faltava enlouquecer, diziam.  Ela nunca aceitaria que ele amasse outra mulher. Segundo essa versão dos fatos existia dias em que ela ficava completamente descontrolada. O sentimento de posse era como uma nuvem negra que eclipsava tudo que ela via, sentia, cheirava ou comia. Existiam dias em que ela simplesmente só pensava em Eduardo. Por isso ela tentou varias vezes se livrar dele. Tentou acabar com essa agonia. A de um amor estranho. Ilógico. Ela achava que eles não combinavam em nada. Nunca concordaram com nada.  “Diferentes bandeiras” uma amiga lhe disse uma vez. Existem relacionamentos amorosos que lembram nações inimigas. Cuja fronteira está sempre em litígio. Uma cultura totalmente estranha uma a outra. Mesmo nessa época de globalização essa idéia ainda prevalece. E ela procurou compreender com todas as suas forças, o porquê desse sentimento. Dessa obsessão louca. Ele não era nem o seu tipo de homem. Era meio calvo. Tinha uma barriga estufada. Um tipo nada atlético. Por isso e outras coisas ele tinha que sofrer muito. Pelo menos era isso que diziam as más línguas: que ela tinha essa paixão enterrada por dentro de seu corpo. Crescendo como um parasita ou um “alien” daquele filme de ficção cientifica.


Três
Na calada da noite. Foi dessa maneira que Eduardo conseguiu ver Claudia. De longe. Ele na penumbra. Morrendo de medo que ela o visse. Mas o que ele estava fazendo? Ela tentou matá-lo. E mais de uma vez! No entanto ele estava ali, o coração apertado, quase as lagrimas. Mas que masoquista de merda! Será que não aprenderia nunca? Essa mulher é o cão chupando manga! Com aquela calcinha de coelhinhos então! Que Deus tivesse piedade de sua alma! É só dessa vez, pensou, ele não a veria mais. Seria sensato. Teria vergonha na cara. Ou assim esperava que acontecesse.



Quatro

-Minha face. Eu não quero que você toque na minha face. Você é má. É traiçoeira. É uma serpente.
-mas quem disse que eu quero te tocar? Eu quero que você morra seu babaca. Como eu sou incompetente, deveria ter contratado um profissional para acabar com você.
-então porque não contratou? Por acaso perdeu o jeito. O sangue frio?
-não me provoca.
-senão o que? Vai rasgar a calcinha de coelhinhos, só de raiva?
-porque falou na calcinha? Você está ficando excitado?
-só se eu fosse louco. Um lunático. Um paria. Ai talvez você tivesse alguma razão!
-então para de me olhar assim!
-assim como?
-como se fosse me devorar, me chupar, como um sorvete de morango!
-ah o sorvete de morango é covardia! Não tem outra metáfora para usar? Essa e golpe baixo.
-só porque eu sussurrava isso no seu ouvido no quarto? Mas que fraqueza.
-eu não entendo porque colocaram a gente conversando assim. Ainda não entendi.
-e eu menos ainda! Ai! Estou com uma dor na coxa! Acho que é câimbra.
-mas que coxa! Quero dizer, são essas cadeiras. Só faltam aleijar a gente.
-eu sei. Por isso evito me sentar por muito tempo em qualquer lugar. Sempre foi assim, lembra?
-mas é claro! Lembro-me do dia que você ficou com os quadris doendo. Foi por causa daquela poltrona que comprou. Você pagou uma nota por ela, não foi?
-o dinheiro foi seu.
-mas você escolheu.
-está bem, fui eu!
-falando nisso, você está muito bem. É o cabelo, esse corte novo valorizou o seu rosto.
-acha?
-claro.
-saber o que eu queria agora? Um sorvete de morango! E você?    
-eu? Um roçar qualquer de seus cabelos.






segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O Escritor Maluco.: porque literatura?

O Escritor Maluco.: porque literatura?

Conto Dezenove. Todos Procuram Novidades.







Homo Sapiens

Maurice Larval veio para “o safári”. Ainda na França, estava convencido da importância dessa “caçada”, ainda mais, se tratando desse ambiente perigoso. Era fascinante. Trouxe a sua melhor câmera, a digital. Pensava que esse era o lugar perfeito, e além do mais, havia o elemento surpresa, que serviria para as fotos espontâneas. Pensava: “que a lente capte o animal. Pêlos enrustidos e lisos. A imagem dessa pequena figura ardente”. Depois de semanas de preparativos, Maurice chegou do vôo da França para o Brasil. No aeroporto do Rio de Janeiro ele encontrou Noel, amigo e organizador da “caçada”. Naquele dia de Agosto choveu na cidade, finas gotas durante toda a semana:
- mas que dia cinzento, onde esta o tempo maravilhoso que eu vi naquele cartaz em Nancy?”
Mas Noel o reanima. Diz que no dia seguinte, com certeza apareceria o sol. Pegam o van da agencia de turismo. Chegam ao hotel, onde eles se acomodam cansados e ansiosos.  Começa a chover mais forte, e seus amigos pensam em adiar a viajem ao local indicado para as fotos, mas o francês esta decidido, vai de qualquer forma. Ele pergunta:
- mas Noel, não existe nenhum risco? E se a criatura se sentir acuada, nós podemos ser feridos?
O amigo do francês coça a orelha, olha para o lado pensativo:
- na verdade ele é pequeno. É de pequeno porte. Mas eu estou preocupado com outras coisas.
Naquela tarde pegam um van amarela e se dirigem para o local onde o “animal” foi localizado. Passam por uma barreira policial no pé do morro. O carro para na barreira. Três policiais com capas de chuva se aproximam:
-para onde vocês vão? Essa área é perigosa. Não estão ouvindo o tiroteio lá na frente?
Noel conhecia os policiais e explicou o objetivo deles - não dá para a gente da à volta por baixo do morro? Estou falando naquela estradinha do deposito de gás! Vamos lá, quebra o galho da gente!
Os policiais fazem uma conferencia. E decidem liberar a passagem mediante um pequeno “pedágio”. Na passagem do deposito de gás, eles vêem dois corpos estirados na rua de paralelepípedos. Um grupo de policiais carrega mais um presunto e o joga perto dos outros. Maurice faz algum comentário sobre o Iêmen. O estrangeiro sentia-se excitado com tudo aquilo. Logo lhe veio às lembranças de um safári na áfrica central, quando ficou a menos de vinte metros de uma leoa que mastigava uma gazela. “O fotografo saiu finalmente para caçar” pensou. Após o tiroteio entre a policia e os traficantes, Larval pensou em desistir. Mas não. O barulho repetitivo dos fuzis automáticos só serviu para atiçar ainda mais os seus instintos. Para que tudo isso fosse motivo de maior orgulho, quando o resultado viesse.
Chegaram próximo ao local, e perceberam que estavam em um monturo de lixo perto de uma pequena estrada de terra que ia dar em um matagal. Desceram da van e carregaram o equipamento. Andaram um pouco até um barraco abandonado perto de grandes rochas cheias de pichações. Chovia fraco. No barraco de papelão, colado na parede, viram uma noticia anterior sobre um desabamento de encosta, de um mês atrás. A chuva caia fraca. Esperava que “ele” saísse da caverna. “A criatura”. O francês se perguntava se podia entender bem aquela situação. O aspecto de cripta que era esse lugar, um lugar ermo, no pé do morro. Onde alojam as pessoas, pseudos seres humanos. Seres humanos. Porque não permitiam que fossem humanos. Essa ideia rondava Larval como um campo de forças invisível. Em sua digressão, era como se em algum tempo passado tivessem expulso aquelas pessoas da crosta terrestre. Tal a imagem que ele se deparou. Pessoas tristes e acéfalas. E tudo isso, dava a tudo ali, uma sensação de surrealidade. E a ele um sentimento de deslocamento e hesitação.
Naquele ambiente de barracos semi destruídos, cheio de lixo, ali perto da caverna, preparam-se para as fotos. Todas as máquinas apontam para a entrada. Uma boca enorme e escura. A luz está boa. A chuva parou. E agora tudo é quietude. Uma sombra aparece. É a “criatura” que vem saindo na boca da entrada. Espantam-se com a figura. Maurice e Noel se entreolham. O menino agora na boca da caverna, quase nu, escuro e sujo. Olhar que se perdia. Esperava (em expectativa?), que lhe fosse atirado alguma coisa. Um pedaço de pão talvez? De cócoras, cabelos duros e desregrados, corpo esquálido arqueado, virou-se para a câmera. E pipocam as tomadas. Como tiros curtos e insensíveis. Um registro trágico. Eterno é incompreensível. Assim desejava o estrangeiro. E foi assim, que ficou. O registro para a posteridade. Para o “safári” de Larval. O menino, preso na foto, como um prêmio a ser “apreciado” por uma sociedade “globalizada”.


domingo, 31 de outubro de 2010

Conto Dezoito. Ah, a Ciência.







O Laboratório


Depois das aulas Fernando Goiabeira quis corrigir as provas. Entrou no laboratório da universidade e sentiu de pronto um odor estranho. Parecia que sua cabeça doía e sentia uma ligeira vertigem. Começou a ter estranhas sensações. Sentia o seu corpo inchar e ganhar contornos redondos, como um grande pote. Percebeu que estava ficando transparente, dava para ver seus órgãos internos: o coração por trás das costelas, as vísceras e até o seu fígado. Atinou sobre essas estranhas sensações, de como estava se sentindo um recipiente. Daqui a pouco acharia que poderia desatarraxar o alto da cabeça e retirar ou colocar alguma coisa dentro dela.
Não deu outra. Desatarraxou a tampa. Mas que dor de cabeça! A primeira coisa que saiu lá de dentro foi um compendio inteiro de química orgânica. Seguida de aulas de física quântica que tivera na época do mestrado. Mas o que era isso que saia agora meu Deus? Não podia acreditar. Um volume inteiro da enciclopédia britânica, que lera ainda na juventude! Começava a sentir vertigens. Algumas proposições também escapavam. Cuspiu um silogismo categórico. Mas estava disposto a encerrar essa experiência bizarra. Sabia agora que alguma coisa dentro desse laboratório lhe causara essas visões. Mas estava fraco. Fernando sentiu de repente que se esvaziava como um balão de gás. Mas que maçante! Era agora praticamente só pele e osso. Suas roupas faziam bolo por cima da pele. E de sua cabeça não saia nem uma vogal ou uma interjeição! Dali a pouco não conseguiria mais pensar!
Um aluno magro de óculos fundo de garrafa coloca a cabeça na porta. Não viu ninguém. Entra no laboratório. Olha para os equipamentos de química. Súbito repara numa substancia escura, gosmenta no chão. Põe uma luva. Pega a substancia gelatinosa. Coça a cabeça em sinal de reflexão. E coloca a substancia em uma pipeta. Mas cadê o professor? Descobre as provas deitadas na mesa. “Mas que vadio!”- pensa. Procura a sua prova na pilha. Acha e fica contente com a nota. Então sai assobiando e gingando.

sábado, 30 de outubro de 2010

Conto Dezessete. Tudo Pela Arte.





Poesia Amarga
Ela escreve na sala abjeta. Não consegue encontrar a rima para a palavra “absurda”. Em um vestido gasto e imemorial, em uma fúria abrigada no lombo, procura a palavra exata. Para aqueles que não a conheciam, a sua forma era intratável como um ouriço de espinhos venenosos. Diziam os críticos, que sua personalidade raivosa derretia os metais das portas e janelas. Mas ela nunca ligou para aqueles improfícuos. Ela era livre. Transitava livremente por aqueles cubículos abomináveis, de atmosfera espessa. Comia quando queria e quando podia. Mas a escrita dolorida, essa não podia esperar. Pensava e repensava um livro. Um testemunho. Saia apenas o suficiente para atender alguma necessidade básica, imediata. Logo voltava a pequena sala humilde e atulhada de coisas inúteis: um som estéreo sem voz. Uma estante de poeira adstrita. Um pescoço de mesa. Naquele local úmido, pestanejava e historiava. Cogitou a sua própria morte. Pensou que nenhuma poesia seria mais real e inevitável. Lembrava também de suas aventuras corriqueiras. Fugira de um sanatório, xingou uma autoridade e agora depois de anos de diabretes, plantava cuidadosa suas flores invisíveis bem perto do pequeno supermercado. Naquela viela. A sua vida era assim. E naquela miserável condição sobressaiam as letras luminosas nas poesias, em contos e recantos, na difícil personalidade, na refrega de seus humores, na cólera rápida e básica que de repente brotava de seu intimo. Lembrou-se disso e se viu na frase da escritora Patrícia Highmith, “um grande artista não pensa, mas apaixona-se por uma grande idéia”. Tomou um pouco d’água. Folheou uma revista de um ano atrás. Procurou na grande bolsa uma calcinha limpa, não achou, e desistiu por um momento. Sentou-se a mesa e pegou um caderno com alguns poemas seus já prontos. “Esse aqui é meio lúdico, detesto poemas assim”. Procurou um que tentava completar. Quando lá de longe, de um lugar prestímano lhe vinha surgindo uma idéia, quando uma alegria insinuava-se por sua face, quando já pegava o lápis para escrevinhar. Alguém empurrou a porta como se fosse uma imprecação de Deus. Um odor nauseativo de bebida dominou o cômodo. E aos berros um sujeito corrosivo, deplorável, indigno, perguntava sobre dinheiro. Com uma grande barba convulsa e poeirenta, um olhar silvícola, lançava imprecações a ela. Nesse gesto imprudente e inexplicável, queria a todo custo algum para a dose da tarde. Ela virou a cabeça lentamente, não acreditando no que via. Sem dizer uma palavra, levantou-se. Foi até a um canto de parede e pegou um porrete de uns setenta centímetros, e num gesto típico de sua fama, partiu para cima do intruso. O primeiro golpe foi no meio da testa. Enquanto o corpo tombava, desferiu o segundo golpe no lado esquerdo do rosto. Nessa cena chocante, o barbudo caiu inerte, apagado como um tubo de imagem destroçado. Poderíamos dizer que sem maiores remorsos ela se virou e sentou-se de novo. E foi assim que realmente se sucedeu. Foi como se nada de anormal houvesse ocorrido. Ela pigarreou. Ajeitou os cabelos, e com uma duvida no canto do olho procurou e achou uma frase bonita para uma ultima estrofe.









Conto Dezesseis. Uma Escolha Terrivel.







A Pedra


Aquele rapaz não sabia o porquê de tantas pessoas nervosas. Punhos elevados, elas pareciam a ele que estavam prestes a fazer alguma besteira. Um grande caminhão de som estava cruzado na rua. Uma multidão gritava e aplaudia o homem que falava. Ele era alto, de óculos de aro de prata, e usava um relógio caro, logo deveria ser uma pessoa rica. O rapaz media os outros a sua volta. Via as oportunidades de ganhar algum à custa de qualquer otário que vacilasse. Conseguiu ver uma corrente de ouro no pescoço de uma jovem. Seus olhos se chocaram com um celular nas mãos de um senhor de meia idade, logo ali a sua frente. O rapaz transpirava em gotas. As palmas de suas mãos estavam geladas e tinha uma sensação ruim no estomago. Ele estava com medo. Mas não poderia deixar passar essa oportunidade. Afinal, não era todo dia que encontrava tanta gente junta. Vítimas perfeitas. Passou a mão no queixo de barbas ralas, e começou a contabilizar o lucro futuro. O som aumentara. Ficava mais quente e o numero de vítimas acrescia.
Caminhou para perto das arvores, para junto da moça com a correntinha. Os gritos saiam compassados da multidão. Eram palavras de ordem, ditas com calor e convicção. Ela nem sentiu quando foi alivia do pequeno peso no pescoço. O rapaz era um “perito”. Logo se dirigiu para o senhor do telefone celular. Nessa, ele teve que correr após gestos rápidos e decididos, por conseguinte, aquele havia se mostrado muito mais esperto, e quase melou a jogada. Ele corre. Afasta-se da passeata que ganhava novos adeptos. Virou uma esquina. Dirigi-se para um terreno baldio, para fazer “a contabilidade”. Viu que o telefone celular era ótimo, tinha câmera de alta resolução e acesso a banda larga na internet. A corrente de ouro, também lhe renderia algum dinheiro.
Saiu dali, e foi à casa do “gordo”. Bateu na porta e um negão mal encarado atendeu. O rapaz disse ao sujeito que tinha “um ganho” para negociar. Deixaram-no entrar. Lá dentro “o gordo” avaliou a mercadoria e ofereceu cem reais por tudo. Mas só? Dá no mínimo trezentos! “Só dá cem”-disse ‘o gordo’. Meio contrariado o rapaz aceitou e tratou de sair logo dali, não podia dar mole. Afinal ele tinha outra missão mais importante. O dinheiro tinha um investimento certo. Pegou um ônibus lotado até a parte antiga da cidade. Chegou a um casarão abandonado, onde se via alguns trapos secando ao vento no varal improvisado. Uma mulher magricela o esperava. O rapaz perguntou-“cadê ele?”. Ela apontou para um cômodo desguarnecido. Ele entrou e se aproximou. Lá dentro, na imensidão daquele diminuto quarto, alguém brincava com sua vida. Uma criatura de olhos vermelhos, com um sorriso escondido por trás de uma carranca de imparcialidade estava sentada em uma cadeira velha, como um senhor num trono. A seus pés num pano velho e puído jazia um revolver, uma faca longa e afiada e um pote de cicuta. O rapaz entrou e olhou fixamente para “as coisas” que estavam no pano. A criatura perguntou qual a morte que ele queria hoje. O rapaz apontou para o revólver e entregou o dinheiro. Em um gesto teatral a criatura fez um floreio com o corpo e entregou a arma. Mas avisou: “usar aqui não. Só lá nos fundos da casa”. O rapaz mal podia conter a ânsia. Parecia que uma força mais poderosa que o amor que ele tinha por sua mãe, mais urgente que o ar que um afogado necessita para viver, e mais lógico do que a preservação de sua vida, havia lhe tomado. Ele não pensou em nada, ele não observou nem as flores multicoloridas do fundo da casa. Quando ele acendeu o cachimbo para a primeira vertigem que levaria oito segundos para atingir o seu cérebro. A maldita pedra. Foi como se ele encostasse um revólver na cabeça e apertasse o gatilho. E um pequeno suicídio lhe sacudisse o corpo.


Conto Quinze. Devaneio de Um Casal.







Lembranças da Praia do Meio
Era um dia de frescor de pedras. E como a pele dela estava limpa e perfumada pelo mar, então ela se sentia muito bem. Começou a beijar o céu, olhando para o alto, lançando beijos como se fossem moedas de ouro. A sua direita um farol ao longe, dormia na esperança que viesse a noite. Da praia dos artistas veio uma musica serpenteando no ar, as notas musicais brilhando com os reflexos da luz, os tons eram orquestrados pelo sol, que no azul profundo, confundia o verde das ondas. A bela menina Maresia se espreguiçou sentada, na areia calma e abrasadora. de repente, duas mãos taparam-lhe as vistas. Era o Boto aquele rapaz vistoso que veio do asfalto. “Seios de conchas” ele disse, em um elogio atrevido. “Nuvens e céus” ela respondeu como a rebater o atrevimento e transformá-lo em recato. Ele sorriu e sentou-se. “Mas que dia! Você brilha menina!”. Confidencialmente, para quem os visse de longe, esses dois amantes eram aromas e imagens que se enleavam com a praia. Ao redor deles, vendedores pareciam pencas de búzios, e no ar volteavam pássaros pescadores. Ali perto, garotas passavam, e mostravam lubricamente, pêlos dourados e ancas redondas nos osculus do mar. Ondeando. Ondas e mais ondas. Mas que gosto de duna na preguiça da sombra. Boto, o rapaz, se afogava nos olhos de Maresia. ”Meu espírito aprecia e dorme” ele disse. Mas ela se sentia diferente. É no sentimento de escuma, ponderou, que aprendeu o amor. A energia do ontem dá a praia, e ela se lembra que ainda menina, viu coisas maravilhosas naquela praia em uma tarde mágica. Foi quando o segredo do mar abriu-se, os seus naufrágios. Ela lembrou e sorriu. E Boto ia à Maresia. Dois movimentos em um. Levantaram-se e foram até as rochas eternas que é no forte dos reis. Caminharam contentes e ligados por um laço de rosas invisíveis. Contornaram o muro de pedra do forte. E lá a viram: a lembrança que bóia. É lá onde o passado encontrava o presente, que veio a caricia no choque das ondas. Nesse amor renascido,Que viveram ternamente. E o dia cai súbito pelo alçapão do espaço. E eles ficaram, continuaram abraçados. Por esse encanto eles se lembrarão sempre desse dia. E esses dois corpos cintilarão na lembrança das eras.  Do amor simples, descomplicado. Eternos e invioláveis. Duvidam? São minha lembranças? Não são? De fato não tenho certeza. Apenas sei que é a mais pura verdade.

Conto Quatorze. A Duvida Que Toda Mulher Têm.









É Noite de Peixada


Dona Salsinha era uma mulher prendada. Cozinhava como ninguém. Mas com o passar dos anos foi relaxando. Começou a tomar de vez em quando uns copos de cerveja. Logo estava viciada em levedura. Cara inchada. Com jeito de dobradinha. Os únicos elogios que recebia eram do padeiro Lagostim. Dizem as más línguas que ele era doido por uma mulher desregrada, mais gorda, encardida. Dizem que era uma tara. Então dona Salsinha cabia no perfil. De avental e tudo. Ela surpresa pensou bem no caso. Seria verdade? Ele não era propriamente bonito, mas tinha os seus encantos. Bastava tomar um bom banho, se barbear. E ela? Como será que estava? Sentia-se bem pelo menos? Como ela poderia se sentir bem? Os seus cabelos pareciam buchas de lavar louça, gosmentos e coisa e tal. O seu vestido tinha manchas escuras que lembravam gordura e restos de alimentos, e seus olhos eram duas formas escuras que pareciam bifes mal passados. O que pensava? Que se algum homem a visse agora, sairia correndo pela rua gritando: “corram todos, a cozinha de dona Salsinha acaba de ganhar vida, e vai nos atacar!” Ou pior, que ela era uma baranga, da pior espécie. Desanimada, constatou que ainda cheirava a cebola e a peixe. E assustada pensou: “será que estou com cara de filé de pescado?”. Não teve jeito. Naquela noite em um gesto de desespero ela jogou fora o dentão.

Conto Treze. Somos Animais Curiosos.







Entrega Rápida

As luzes da casa estavam apagadas, apenas um pequeno e lindo abajur no quarto podia ser visto, olhando-se por uma porta semi-aberta. Na sala garrafas e copos ao chão. Na escuridão alguns panos. Poderiam ser roupas jogadas ao acaso. Também dois livros abertos em algumas páginas obscuras que da penumbra pareciam dois tijolos de cimento. No ar um aroma estranho, estagnado e doce.  Aproximou-se da porta do quarto e viu, mas não acreditou. Na pouca claridade pode ver dois corpos nus e extenuados de tanto esforço. Agora entrelaçados, serenados na consolação. O carteiro meio surpreso estancou na porta. O pacote na mão. Seria gente mesmo, ou algo mais animalizado? Os dois corpos nus se mexiam de vez em quando, no enigma do sono. Uma mosca resoluta zuniu perto de seu ouvido, e foi pousar nas nádegas do "homem". Uma motocicleta passou lá fora fazendo um ruído estrídulo. E depois o silencio foi ganhando força. Nessa surpresa de entrega, um impasse foi criado. Mas às dezoito horas em ponto, na noite nova, o carteiro deixou o pacote e em uma oportunidade lasciva, antes de ir embora, filmou um pouco no telefone celular. No outro dia o “youtube” ganhava mais uma imagem, de um casal, que mostrava a todos que quisessem ver, o quanto gostamos de imperfeições. Um casal de macacos embriagados repousava mansamente.   

porque literatura?

Pois é pessoal. Escrever é uma de minhas paixões entre tantas, mas devo confessar que essa é daquelas que me deixa louco, alucinado e disposto a tudo. De ensaios a contos  e romances gosto de escrever de tudo e os meus projetos estão em pleno andamento. pretendo escrever alguns contos (espero que gostem) e discutir sobre literatura a sério e também não tão a sério assim. O importante é fazermos o que gostamos. Então amigos vamos começar a blogar e a trocar idéias!