A Vingança da Lua na Casa do Sol
Deixem-me contar a minha historia então.
Conheci a mulher de minha vida no colégio, no segundo grau de uma escola
tradicional. Ela na verdade nunca deu muita bola, mas eu me apaixonei no
primeiro olhar. Na primeira palavra que saiu de sua boca. Na primeira tapa na
cara que eu levei dela durante uma festa na casa de uma conhecida. Eu sei,
podem dizer que na realidade eu estava interessado na fortuna da família de
Simone Prado, mas o que eles sabem da verdade? Só vêem o que querem ver em suas
visões mesquinhas. As mesmas coisas dizem sobre a aparência de minha noiva.
Como podem ser tão cegos? Feia? Essa condição cabe varias interpretações!
Lembro-me da peça o Misantropo de Molière em que ele fala da retórica do amor.
Das imperfeições perfeitas ou das perfeitas imperfeições, não sei exatamente,
mas ali ele diz que a gorda tem porte cheio de majestade e a altiva tem a alma
digna de uma coroa. É essa a definição de minha noiva. Ela tem sua própria
beleza escondida. Pois quem é mais sábio? A arte é a expressão da sabedoria, da
visão profunda. Quem pode dizer que uma pessoa é só isso ou aquilo? As pessoas
me perguntam: “Geraldo, será que você não está se excedendo? O que você viu
nela?” Eu só respondo que elas é que estão se excedendo. Eu é que sei o que
sinto. O que é verdadeiramente importante para mim.
Eu sou o Marquinho. O melhor amigo de
Geraldo, aquele deslumbrado! Ele coitado, sempre foi muito indulgente, míope e
prestativo. Basta dizer que se existe um grande ingênuo no mundo, este é o meu
amigo! Quando ele disse que estava namorando a Simone, pensei que ele tinha
caído de cabeça nas pedras do parque. Vocês já viram um jacaré amarado na
cintura? É ela! Isso com maquiagem! A propósito, um dia eu estava andando no
centro da cidade, e ela vem saindo de uma loja chique, daquelas que uma bolsa
pode custar cinco mil reais, o vestido dela dava para fazer uma cortina de
janela. Mas o engraçado em toda a cena dessa tarde foi o homem da carrocinha de
cachorros, que a olhava desconfiado, de rabo de olho, sem saber se a
cumprimentava ou se a prendia e levava embora! Depois ele veio me perguntar se
“aquilo” era mesmo uma pessoa! Tá bem. Vocês acham que eu estou exagerando. Eu
já estou acostumado. Mas para prevenir e defender o meu ponto de vista, eu ando
com essa foto aqui ô, os dois em uma reunião do Rotary Clube. Imaginem que um
senhor achou que era uma foto de um rapaz sendo atacada por um cão da raça
Pitbull! Exagero? Essa foto foi parar na internet, e garanto que não fui eu. Só
sei que está fazendo o maior sucesso. Mas continuo a levar essa foto no bolso.
Por quê? É simples, eu não quero ser acusado de preconceito, de ser um cara
exagerado em minhas opiniões. Basta mostrar a foto!
Eu? Meu nome é Tânia. É eu quase
namorei o Geraldo. Ele até que é bonitinho. Mas é muito bobo, pegajoso. Uma vez
ele tentou me beijar durante uma palestra sobre homicídios premeditados na
faculdade. Imagine só, estavam passando cenas de vitimas das mais horrendas
mutilações. E o cara tinha estomago para beijar? Que nojo! Fora isso ele é um
cara legal. Meio abestalhado, mas legal. A noiva dele? É uma pessoa difícil.
Como? É extremamente arrogante, olha todos de cima para baixo, como se ela
estivesse em cima de um pedestal. E daí que é rica? Ela deve ter tantos
complexos que talvez esse seja um jeito de compensar. O que? Eu acho que vocês
nunca a viram pessoalmente. Vão ver. Ai sim poderão dizer, se eu estou falando
alguma bobagem!
A festa de casamento tinha sido marcada para acontecer na cidade natal
de Simone. O padre estava com um mau pressentimento. Onde já se viu marcar uma
cerimônia de núpcias em um dia de eclipse total do sol. Quem teve essa idéia de
jerico afinal? Na subida da rua principal as casas eram um recôncavo de
siluetas. O declive era banhado por lunetas a procura do eclipse. Naquele final
de dia, tudo que Geraldo poderia enxergar, a sua futura decepção diriam, e
embora ele não desconfiasse de nada, eram janelas preocupadas de dor, de uma separação
precoce. Ali, nas casas enfileiradas, os parentes da poderosa Simone de suas
janelas abertas, debruçados, cogitavam se haveria ou não a festa. Todo
casamento que se prestasse tinha que ter uma festa. Mesmo em um dia como
aquele. A avó da noiva disse que se acontecesse esse casamento naquele dia,
todos estariam amaldiçoados. Imagine, essa velha é cheia de manias mesmo.
- O Geraldo.
- Fala Marquinho.
- Você tem certeza do que tá fazendo?
Quero dizer, será que você quer mesmo se casar?
- Eu estou aqui, não estou?
- Mas será que você está bem? Quero
dizer, se alguém realmente tá certo dessas coisas? É um negocio muito serio
essa de casamento.
- Eu sei que é serio. Hoje é o dia mais
feliz de minha vida!
- Enlouqueceu.
A cidade do interior onde a festa de
casamento foi organizada ficava a poucos quilômetros da capital. Cidade pequena
de oito mil habitantes, onde o sobrenome Prado era motivo de orgulho para
todos, afinal, foram eles que fundaram a cidade. Praticamente eram donos dela.
O casamento por coincidência iria acontecer no dia de um eclipse total do sol. Em
um espetáculo infrequente da natureza, o astro rei seria engolido pela dama da
noite. Diz o ditado popular que casamento em dia de eclipse é morte na certa ou
azar. Que a pessoa que desafia essa maldição, carregará a desgraça para o resto
da vida.
- Tá vendo Geraldo. É melhor desistir
cara. Ainda dá tempo!
- Mas como você é inconveniente. Não
está percebendo que os seus exageros são impróprios? Aonde já se viu!
No horário marcado, na fazenda dos
Prados, tudo estava pronto, o grande palanque do show musical com uma dupla
sertaneja famosa. As mil mesas. O bufê gigantesco. Os fogos de artifício para a
noite. A presença de mais de mil e quinhentos convidados, a nata da sociedade.
O noivo nervoso e os pais impacientes. Ela se demorava. O pessoal dançava animado. Mas as coisas
começavam a acontecer. Um tio de Simone caiu da cadeira bêbado e quebrou o
nariz. A comida e a bebida percorriam as mesas como se os pais da noiva fossem
irresponsáveis com o colesterol dos convidados. Um gordo teve uma séria
indigestão e foi levado as presas por uma ambulância. Chegou a noticia que um
primo do padre tinha sido preso por direção perigosa. Uma convidada teve um
surto psicótico e mordeu a orelha de outra senhora, desafeto de muitos
anos. E nada de Simone chegar. Demorou
muito. E então tudo ficou escuro. Mesmo com a banda que tocava, poderíamos
sentir um estranho silêncio por trás dos sons do ambiente. Como mágica todos
silenciaram, até a musica. Todos olhavam para o alto, como se estivessem
hipnotizados, mesmerizados. Por poucos minutos o mundo parecia ter parado. E
então subitamente, a luz do sol começou a voltar enquanto a lua precipitava-se
no plano invisível do céu. E apesar de todo esse espetáculo, Geraldo não
conseguia se esquecer de sua noiva. Enfim onde estava ela? Simone não apareceu.
E a noite fechou a festa.
Em meio aos choros das mães e
constrangimentos dos pais, os garçons e empregados recolhiam as mesas. Geraldo
estava cabisbaixo e com os olhos injetados de cólera. A sua frente ainda se
encontrava a prima de Simone. Em suas mãos uma carta que dizia de maneira
sumaria e sintética, as razões da ausência da noiva e a fama destruidora que
tinha o dia de eclipse.
Caro Geraldo.
Como pode notar, estou desistindo do
casamento. Quero que saiba da imensa dor e constrangimento, que sinto nesse
momento tão importante. Se isso aconteceu, não foi por culpa sua, a única
explicação razoável, é a de que apesar de seu carinho de sua atenção extremada,
eu não pude sentir o amor que lhe é merecido. Igualmente, para maiores
esclarecimentos, é de supro reconhecimento, a aclaração de que amo outra
pessoa. Mais precisamente uma pessoa bem próxima de ti. Mais precisamente, a
pessoa de Marcos Teixeira. Sim o seu amigo Marquinho é aquele a que dedico um
amor verdadeiro. E já a bom tempo, desde que estudava o segundo grau. Sinto
verdadeiramente que as coisas tenham acontecido nesses termos, mas espero que
compreenda, e desejo a ti toda a felicidade.
Da sua Simone Prado.
Na casa grande da fazenda, no quarto
que tinha sido preparado para eles, Geraldo cogitava, e apesar da dor, seus
pensamentos podiam se dar o luxo da poesia: “porque Simone saiu secreta,
envolvida nas carcaças de nossas lembranças? Olhos brilhantes nas trevas, onde
me aprisionastes? Estava preso a ela por um helo de amor. Ela se foi, deixando
a sua presença”.
Mas, deveras, a sua presença ainda
permanecia naquele quarto. Invisível e irresistível. Essa presença invisível,
era a força que lhe prendia. Apesar de toda a ironia, da miopia, e de todo o mistério
do eclipse.
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