segunda-feira, 30 de julho de 2012







Escrita de Índio 

Naquele momento, as palavras viam com dificuldade para Guaci. Ajeitou o cocar e guardou o arco debaixo da mesa. Pegou a caneta e começou a escrever no corpo. Será que deveria começar dos braços para as pernas, ou da barriga para o rosto? Estava indeciso.  Não conseguia se lembrar do tema, ou melhor, para quem estava escrevendo mesmo? Pensou logo no seu sagüi. De como ele era feliz. Ele tinha mãos igual gente, mas não precisava mandar recados para ninguém. Que sorte a dele. Bem, ele recordou-se de que precisava minutar para o chefe Juruá.  Queria contar ao amigo, como ele havia arranjado uma esposa japonesa. Pensou um pouco, e começou a rascunhar pelo braço esquerdo. Ainda bem que não estava suado, porque a letra sairia meio inteligível. Lembrava-se que uma vez teve que refazer oito vezes uma petição. Naquela ocasião o seu pai, que não sabia as coisas do homem branco, o estava aborrecendo, por causa de uma carta de amor para uma índia caiapó do outro lado do rio. Conseguiu escrever a carta e foi levar o recado para o pai. Ele esperava que no outro dia as coisas ocorressem de maneira apropriada, mas na virada da quarta oca, Guaci se apaixonou outra vez. Foi quando viu passar uma jovem índia de outra tribo, uma estudante que trazia no corpo, um texto inteligente com uma letra miúda e invertida. Seus olhos viram o brilho, na pele morena e jovem ele podia discernir umas primeiras palavras de Descartes.
Tudo seriam as mil maravilhas naquela semana, se um acontecimento enfadonho não lhe tivesse tirado o sossego. As suas habilidades de redação seriam necessárias para tentar resolver um problema domestico mas de grande repercussão. No dia seguinte, receberam visitantes inesperados advindos do outro lado da reserva.  Guaci com seus olhos de carcará, de um escritor experiente, fez uma varredura nos visitantes. Com a sua técnica, ele começou a esmiuçá-los, a medi-los em sua aparência e originalidade. Vamos à descrição:
“Eram dois índios. O mais velho tinha o rosto oval, e ostentava um cocar azul nos lados e vermelho no alto. A sua expressão denotava certa autoridade. Os rostos pintados nas bochechas gordas eram de listras de um azul escuro. No seu peito, um colar de pequenas cordas claras e uma fileira de objetos brancos que lembravam pequenos dentes pontiagudos, e davam-lhe um aspecto mais feroz. O dorso era igualmente pintado, por listras verticais intercaladas por faixas finas e grossas. O mais novo estava logo atrás do chefe, onde se poderia discernir parte do rosto redondo. Pintado na parte superior do nariz para cima até a testa de azul marinho e vermelho da ponta desse mesmo nariz indo cobrir todo o rosto ainda o queixo. Esse jovem índio, em sua vaidade, usava um colar parecido com o do mais velho, mas trazia também caído no meio do tórax uma pequena faixa de tons amarelados e vermelhos com dois pequenos detalhes em verde, que realçavam a franja branca do final. Por fim, em seu dorso podíamos divisar pinturas continua nos dois lados do corpo”.
Ufa, para que essa descrição extensa? Quantos detalhes. Guaci adora essas descrições extensas típicas da literatura do período do Romantismo. Bem, deixa prá lá. Mas o estranho nisso tudo, é que esses não trouxeram nenhuma escrita consigo. Nem nos braços e pernas ou outra parte. Guaci se perguntava se esses visitantes eram analfabetos, ou se usavam alguma tinta invisível em seus escritos. Aproximou-se do mais velho, e enalteceu o seu belo cocar, a sua expressão de chefe valente e a capinha de telefone celular confeccionada com pele de jaguatirica. O chefe respondeu-lhe que estavam ali para falar com seu pai. Guaci então perguntou se eles tinham alguma mensagem especial para entregar. Talvez uma carta de algum conhecido ou um recado de e-mail. O velho chefe sorriu para o mais jovem que o acompanhava e disse que trazia apenas algumas palavras escritas para um velho amigo de muitos anos de caçada. E que entregaria apenas a ele. Gaci diante dessa recusa educada em dar-lhe, a saber, de imediato o conteúdo da mensagem, os levou para a oca de seu pai. Pegou o caminho da lanchonete de Joey Taylor, um americano que vivia ali há muitos anos. Quando passaram pelo estabelecimento de estilo indígena, sentiu-se logo um cheiro forte de anta assada, o branco magro, de óculos escuros de surfista estava tratando alguns peixes, perto dele umas latinhas de refrigerante coca-cola, no alto a sua direita uma carcaça de macaco temperada com ervas esperava a vez de ir para o fogo. Continuando o seu caminho e passaram pela oca da índia gorda, que esbravejava com o marido por causa de uma tevê queimada. Andaram alguns passos e chegaram à oca do velho “Mão Pelada”. Pelo menos era assim que todos chamavam o pai de Guaci. Eles o encontraram do lado de fora se balançando em uma rede de dormir. No reencontro dos amigos, houve muitos risos e afagos. Mas na hora da conversa os dois velhos se afastaram dos mais jovens e foi nesse momento que o visitante levantou a planta do pé esquerdo e então o velho “Mão Pelada” ficou pálido, espremeu os olhos, mordeu os lábios, coçou a cabeça e chamou o filho com um aceno de mão. O filho se aproximou e leu uma pequena mensagem na sola do pé daquele visitador onde estava escrito com a letra minúscula e simples de uma semi-alfabetizada, uma mensagem que parecia ter sido ditada por alguém mais inteligente do que ela. A mensagem era de uma mulher:
“A mensagem começava com uma saudação inaudita, e continuava com lamentações incipientes, de como o velho “Mão Pelada” sabia de que a muito eles não se comunicavam, continuava com uma lamúria, segundo o entendimento dela, de que por uma decisão do deus tupã ela encontrava-se doente e fraca. Já não conseguia colher as frutas. Já não conseguia cozinhar o biju. Já não conseguia fazer curumim. Então podemos perceber como estava imprestável para a vida. Já que é assim, esperava que ele não tivesse esquecido sua promessa de cuidar da filha deles que já era uma mulher feita, uma vez que a filha não tinha marido, não tinha ninguém. Nesses termos a velha queria informar que a filha já se encontrava a caminho e que queria que ele agisse como um pai, dando-lhe o abrigo pretendido. Assim queria a velha do Biju”.
O velho “Mão Pelada” torceu a cara, e pediu logo um “rapaz expresso” para mandar uma mensagem rápida e sucinta. Mandou chamar o pequeno Jaci e pediu para o filho escrever nas costas do mensageiro com letras grandes, de fonte quatorze, aproximadamente, para que todos tomassem ciência de sua decisão. Em uma escrita ligeira de bela caligrafia de Guaci, o velho ditou com as palavras aproximadas a que ele pretendia, e que o filho tratou de dar um tom menos coloquial e uma versão mais elegante:
“O velho disse para sua ex- consorte que realmente, a muito que não se comunicavam. Sabia que a pobre Velha do Biju sofria, e que a decisão do deus tupã não deveria ser questionada. Entretanto, ironicamente, ele não esperava encontrar a sua velha ex-mulher, padecendo do mal da malaria. E que esse mal viesse acompanhado do tão conhecido sintoma do delírio. Sem duvida o que lhe causava espanto, eram as conseqüências graves que os tremores originados por um ser tão diminuto como um mosquito, poderiam acarretar a mente de uma velha. Diante dessa enfermidade, desculpou-a por fazer um pedido tão eivado de absurdos, desconsiderando o tal pedido de receber “sua filha” em sua humilde morada, deixando assim por uma questão de educação, que o vento levasse as pueris palavras dela. Não se preocupou e perdoava essa falha, de coração. Assim desejava a ela boa sorte e lembrou-a que há muito tempo, há muito tempo mesmo, não se viam. O que era mais um sinal de que ele não tinha maiores compromissos a cumprir com essa senhora. Mas, repetia, por uma questão de bons modos, perdoava tamanho desvario de uma senhora tão idosa”.      
O velho tratou de despachar logo o “menino expresso”, e foram à lanchonete do Joey.
No começo da noite o mensageiro retornou a aldeia trazendo uma inesperada resposta, escrita na bochecha direita que descia vertiginosamente pelo pescoço, e que Guaci leu para o pai. Entre outras coisas dizia:
“Ela afirmava categoricamente que, o ex-marido era um inconseqüente. E que se a muito ele não fora devorado por uma onça pintada, deveria dar graças às preces dela e a vontade de tupã. Doravante as esquisitices e indisposição dele para fazer filhos, a muito custo, fizeram esta a que ele renegava. Compreendia que, ele agora, deveria estar mais senil e decrépito, e que com toda certeza constituiria para a pobre mulher que agora era sua esposa um fardo inútil e sem vida. E que talvez, por isso, a sua memória estivesse igualmente afetada, após tantos anos de preguiça disfarçada de alguma doença imaginaria. Porém não devia esquecer o fato de que na tenra juventude, o pai dela motivado por uma compaixão desmedida o tirou da mata virgem perto da aldeia de onde eles moravam, e que ele naquela ocasião, o outrora jovem “Mão Pelada” se encontrava em tal situação de penúria, que estava a ponto de se acasalar com as fêmeas de macacos aranha. De todo modo, depois dessa triste passagem de sua vida, deveria se lembrar que não recusou do biju que ela fazia, a ponto de se empanturrar, e que diante de tudo isso, e de se esperar um pouco de responsabilidade mesmo de alguém tão afeito no passado a enganar pobres meninas na beira do rio. Uma vez que, a sua memória se encontre mais clara e renovada, queria lhe informar que sua filha chegaria a sua aldeia amanhã. E que agradeceria se mandasse dar uma limpeza na oca e colocassem um pouco de água fresca no grande pote”.
Ele o velho não podia acreditar no que lhe era dito. Procurou a sua arma de guerra com os olhos, com pensamentos obscuros. A insistência dessa velha estava lhe causando coceiras no corpo, a tal ponto que, mandou a sua mulher lhe preparar um chá de auyasca para que, talvez o seu subconsciente lhe revelasse o porquê de tantos aborrecimentos. Diante dessa situação incomum, pegou o “rapaz expresso” pela orelha, e fez Guaci escrever na perna direita do rapaz e remeter uma resposta apropriada e definitiva. O conteúdo de tão inusitada resposta era a seguinte:
“Começou de maneira impessoal, chamando-a de minha senhora. E expos que embora em um passado remoto tivessem se conhecido, nunca ficou claro para ele o papel que lhe cabia nesse relacionamento. Uma vez que, era de amplo conhecimento a disposição dessa mulher devassa, para com os viajantes de todos os tipos e gêneros. Ou por acaso ela estava esquecida do homem branco que vinha no barco grande, de que ele adorava provar do seu biju? Sem falar nas imprudentes escapadas para colher ervas e outros congêneres, no simples propósito de esconder o seu comercio ilícito com algum ianomâmi mais gordo da aldeia vizinha. Entrementes a paciência e recato desse ex marido que falava. Ficou lógico para ele que não era merecedor de tal sina, fato esse que o levou a largá-la. Diante desse pressuposto, o velho “Mão Pelada” preferia servir de alimentos para as piranhas a concordar com tal desatino, dava por encerrada essa discussão infrutífera, e informava a mal afamada Velha do Biju, que a menos que retomasse a razão, informaria as autoridades competentes, que uma canibal sobrevivente de tempos idos, se encontrava a plena atividade na região. Diante disso, cria que estavam conversados, e terminava a carta com os dizeres ‘do Seu agora inimigo mortal’”.
“Mão Pelada” e Guaci achavam que com essas afirmativas, tudo estava resolvido, e foram dormir. Na madrugada um rapaz quase morto, chega de retorno a aldeia. Trazia nas mãos uma capivara pelada onde se via uma mensagem infame, pois uma das maiores demonstrações de repulsa que algum índio culto poderia receber era o de uma mensagem escrita na pele acre e disforme de uma capivara nova. Independente do conteúdo de tal mensagem, pois não haveria maior insanidade do que, mandar um bicho desse desnudo de pêlos, atordoado, e ainda por cima escrito de cabo a rabo como se fosse um índio. Toda a tribo se sentiu nauseada. Era como se não houvesse sobre a terra mais nenhum tipo de decência. E o pior de tudo. Guaci constatou que a leitura da dita mensagem estava simplesmente inacessível, não se lia nem uma vogal. A pele do bicho não serviria nem para escrever em leitura braile. Um cego teria nojo de tatear essa coisa, e nesse meio tempo, poderia sentir fome e sucumbir à tentação de assar o pobre animal antes de ler a carta. Então o Velho “Mão Pelada”, diante de tanta falta de compostura, de tanta incivilidade, teve um colapso psíquico, e meramente foi se agachando lentamente e ficou de cócoras, silenciando por messes a fio, em estado de choque.
Como anunciado, na manhã seguinte chegou à aldeia uma mulher baixinha e gordinha, quase nua e de longos cabelos negros. Ela trazia no ombro um filhote assustado de mico leão dourado, e a tiracolo dois curumins barulhentos. Toda a aldeia foi receber aquela que fora a razão de tanta falta de juízo. Apesar de toda balburdia criada, Guaci recebeu a irmã de braços abertos. Constatou que um dos curumins se parecia com ele, que a irmã era uma doce criatura. Mas o que realmente sensibilizou Guaci foi um lindo texto escrevinhado na barriga da irmã. Um trecho do livro “a jangada de pedra” do escritor português José Saramago, e que talvez servisse para sintetizar todos aqueles acontecimentos:
“cada um de nós vê o mundo com os olhos que tem, e os olhos vêem o que querem, os olhos fazem a diversidade do mundo e fabricam as maravilhas, ainda que sejam de pedra, e as altas proas, ainda que sejam de ilusão”.
             
   













   
              
    






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