Ideograma
do Ser
Todos
naquela favela o chamavam de Baiacu, porque era pequeno e tinha uma barriga
protuberante, inchada pela desnutrição. Para alguns, esse perdido, era o
conjunto de tudo que era ruim. A verdade é que esse atrapalhado, esse pedaço de
osso, esse avejão de gente, tinha família. Ele na tenra infância tinha sido
adotado por uma velha leprosa. Tinha sido levado para “o buraco”. Um lugar
intermediário entre um barraco e um poço abandonado. Lá. Na beira de um morro. Baiacu
nunca tinha ligado muito para isso. Pelo menos era o que dizia para os outros.
A sua mãe era a velha Miada. Foi a que o levou para casa, quando sua mãe
biológica, uma desnaturada que era uma prostituta o havia recusado. A velha
havia contado uma estória bonita. A de que ele bebê tinha sido deixado por um
pássaro dourado. Em uma noite sem lua. Mas quando baiacu fez doze anos, e ela
soube que estava morrendo, contou a verdade a ele.
O
menino queria saber por que a mãe dele, a verdadeira, o tinha abandonado. Será
que ela tinha sido obrigada a dá-lo por fome? Por causa de ameaças de bandidos?
Tinha sido por causa de alguma doença? Ele procurava entender as razões que a
levaram a fazer isso. Todavia a velha foi curta e grossa. Contou que ela era
uma ex-prostituta que tinha entregado Baiacu a má sorte por causa de um golpe.
Um golpe de mestre. Essa bandida, tinha se casado com um homem rico. Um homem
que já naquela época era um idoso. Ela por algum passe de mágica, de um ardil
qualquer, conseguira levá-lo ao altar. E para isso tinha que se livrar da
criança. A velha com lagrimas nos olhos, contava essa desgraça, em um pranto
silencioso e inútil. A velha Miada morreu dez dias depois. Conseguiu-se um
caixão feito de ripas, e a única mãe que Baiacu havia conhecido foi enterrada
quase como uma indigente. Em um pedaço afastado do cemitério. Com uma cruz de
madeira por cima.
Baiacu
demorou-se pouco no barraco. Depois do enterro, foi morar na rua. Debaixo de
uma ponte. A velha Miada havia deixado de herança, cem reais e o endereço da
mãe desnaturada, como um ultimo gesto de dignidade humana. Diante dessa
informação, a esperança se reacendeu como uma brasa no coração do menino. Então
ele tomou uma decisão. Vai à procura de sua mãe. A sua expectativa é a de que
ela, diante do filho perdido, recobre a razão, que se revele uma verdadeira
jóia de bondade e compaixão. Ele espera mais que tudo que ela, aquela que o abandonou,
que o ame, apesar de todas as desgraças.
Se
usarmos um signo humano, para a nossa representação da historia de Baiacu, logo
surge um código pessoal e intransferível, que nos obriga e nos fere. Impede-nos
de encontrar uma explicação plausível, para esse menino, esse desgraçado. Não
lhe permite uma saída honrosa para essa historia tão cheia de desencontros. Alguns
podem retrucar que assim é a vida, entretanto isso, a sorte desse menino, nos
queima como fogo em ira. Cega é nossa visão, somos sem critérios, ou procuramos
critérios na diferenciação, mistérios sem o haverem? Na nossa concepção de
narrativa dessa estória? Será que Baiacu procura nuvens, água vaporosa entre
dedos cansados, disformes na repetição, na infundada capacidade de sofrimento? Sabe-se
lá.
Depois
de muita pesquisa, descobre que sua mãe casou-se com um milionário. Isso
aconteceu quando finalmente, depois de dias vagando, na chuva, no sol
escaldante, depois de ter sido posto para correr varias vezes por pessoas
incomodadas por sua aparência feia e suja. Ele chega a seu destino, à frente a
uma mansão, no bairro mais nobre da cidade. Ele vê o paraíso perdido. Três
carros de luxo na garagem. Um jardim de sonhos. A limpeza do lugar! Ele nunca
podia imaginar que existisse lugar tão limpo sobre a face da terra. Chega ao
portão de ferro cheio de arabescos, e com suas pequenas mãos se pendura nas
grades. Os olhos grandes. O corpo magro e a barriga proeminente.
Um
mulato vestido com um avental e luvas verdes de plástico, o olha curioso. “O
que quer meu filho?”. Baiacu animado responde. “quero ver a minha mãe!” o homem
de avental, ri e volta-se a sua tarefa do dia. Como Baiacu não conseguisse ver
sua mãe, uma vez que todos achavam aquilo um disparate, ele decide entrar a
força. Na mesma noite espera todos dormirem e entra na mansão. De mansinho.
Como um profissional. Antes ele havia gasto os seus últimos reais na compra de
uma camisa e uma bermuda. Tinha tomado um banho e penteado o cabelo. Afinal sua
mãe não podia vê-lo sujo e de roupas rasgadas, como estava. Ele penetra no hall
de entrada e adentra a grande sala estilo vitoriano. A riqueza a opulência do
ambiente quase lhe causa um tumor no cérebro. Era uma coisa além de sua
compreensão. Como poderiam existir coisas assim? A sua mãe, então, devia ser
quase como a virgem Maria. Uma espécie de deusa! O seu espanto quase acaba com
sua razão.
Do
fundo da sala vem um som de pigarro. E depois uma tosse asmática. E então ele a
vê. Sentada em uma poltrona vermelha de desenhos de ouro, uma mulher baixinha,
cafona e bêbada o olha. Uma bêbada inveterada promiscua e egoísta.
-o
que você está fazendo aqui moleque? Não foi isso que eu pedi. Eu quero é um
jovem bonito e viril. E então? Pelo jeito vai ter que ser você mesmo. Pode
tirar a roupa, vamos ver o que você tem!
-a
senhora não está me reconhecendo?
-qual
é menino! Por acaso nos já dormimos juntos? Que porre! Essa eu não me lembro!
-eu
sou o seu filho perdido. Aquele que você deixou com a velha Miada!
-a
velha já morreu há muito tempo. E que negocio é esse de filho? Eu mandei aquela
desgraçada afogar o filhote de gato. Ela me disse que fez o serviço, eu paguei.
-mas
mãe sou eu! O seu filho! Pode me chamar de Baiacu.
-que
sobrenome é esse moleque? Eu já ouvi falar de Coelho, Falcão, até de Pardal,
mas Baiacu? Que mau gosto miserável!
-que
barulho é esse lá em cima?
-ah,
deve ser aquele velho inútil. Você sabia que eu prendi o maldito? Eu mantenho o
meu marido, aquele velho preso a uma cadeira de rodas, e isolado em um quarto.
Não sou genial?
A
mulher bêbada súbito parou de falar. E num jorro de vomito, caiu sentada no
chão. De pernas abertas para o ar. Nesse frenesi etílico, estrebuchou e apagou
ali mesmo.
Agora
Baiacu havia tomado um banho de realidade. Essa mulher era a sua mãe? Essa
criatura que mais parecia às putas que ele cansava de ver nas sarjetas e nas
vielas? Nem todos os tesouros do mundo embelezariam essa mulher. Pelo
contrario. A baixeza moral dela escureceria qualquer coisa. Rebaixaria tudo e
todos aos res. do chão. O menino decidiu ir embora dali, o mais rápido
possível. Mãe? Aquilo era o demônio. Mas a sua consciência o empurrava para o
andar de cima. O idoso! Ele sobe a soberba escadaria. Parece uma eternidade a
subida. Mas entre os muitos quartos, chega a um que esta com a porta
escancarada. Lá dentro está o idoso de camisola de dormir, sentado em sua
cadeira de rodas. Baiacu entra no quarto e resgata o idoso. O menino magro com
sua barriga inchada empurra a cadeira devagar, com cuidado, escada abaixo. No
meio da imensa escadaria, a mulher meio bêbada os espera.
-o
que é isso moleque? Esse pedaço de carne é meu. Você quer levar o meu cofrinho
é?
-eu
não dou! Você é uma puta ouviu? Não vale nada!
-mas
que novidade! Me diz algo que eu não sei!
A
mulher segura na cadeira de rodas e Baiacu também, e travam um cabo de guerra
com o pobre idoso. Súbito a mãe desnaturada escapa as mãos. Nessa tentativa de
impedir a fuga de seu cofrinho, ela rola da escadaria abaixo e quebra o
pescoço!Lá fora o menino empurra o carro de rodas por entre as avenidas e ruas,
com a adrenalina no sangue, até cansar.
Surpreendentemente,
depois de horas, eles estão no centro da cidade. Baiacu limpa o suor do rosto
do velhinho.
-agora
o senhor está a salvo! Aquela vadia nunca mais vai maltratar o senhor. O senhor
está bem?
-quem
é você?
-hora,
o menino que te salvou! Das mãos da bruxa que te mantinha preso naquela casa
grande! O senhor não se lembra?
-você
é o meu seqüestrador? Quem é você?
O
idoso sofria de amnésia e não se lembra que baiacu o tenha salvado. Baiacu em
seu intimo tremeu de medo. Ele poderia ser acusado de seqüestro. Nesse momento o
menino sentiu uma profunda desilusão da vida, estava desorientado, aturdido, como
um tambor oco, não suportava mais essa desilusão. Ele foge, deixa o idoso no
centro da cidade, naquela cadeira de rodas antiquada! O dia vai morrendo e
pessoas esquisitas se aproximam. Como cães atrás de alguma carniça. Logo é
depenado. Primeiro levam o bem mais valioso: a cadeira de rodas. Depois levam a
camisola de dormir. Até os óculos. O idoso aleijado que outrora tinha sido um
grande homem da alta sociedade, se encontra agora jogado ao chão próximo de
latas de lixo e montes de coisas velhas. O tempo passa. Cai uma luz no
horizonte. E logo nos persegue a noite. Ainda encontramos o velho ali, na
penumbra, observando. Gaguejando no escuro uma maldição.
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